quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

a morte é uma arte

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Estou com a garganta seca e a cabeça rodando. Não sei quando conseguirei ficar lúcido novamente. Eu gostaria de poder parar o tempo por alguns instantes, só para eu conseguir sair da cena de fininho, sem ninguém notar que estive lá. Tudo é mais poético na ficção.

Deveriam ensinar na escola como é matar alguém. Como é sentir o sangue quente nas mãos, a pulsação rápida de quem está tendo aquele último flashback da vida nos dois segundos antes da morte. Vida e morte existindo ali, quase simultaneamente.

E ninguém ensina também o que você deve sentir depois. Quando o último sopro se foi, quando você sente aquele frio estranho na espinha por algo que está abandonando de vez aquele corpo – a alma do sujeito, talvez, indo embora. E o vazio. É irônico. Você mata alguém, mas parece que matou você mesmo.

Cheguei em casa sem nem lembrar o caminho que fiz. Só ouvia vozes na minha cabeça, do padre me dizendo que aos oito anos de idade eu já deveria confessar, da minha mãe dizendo que os maus meninos vão para o inferno, da minha ex namorada gemendo que a vida era boa demais enquanto eu a deixava louca embaixo dos lençóis. A vida é uma merda, e matar alguém só piora tudo.

Beber, fumar, dormir, nada me faz esquecer dos olhos daquele desgraçado. Dos olhos de desespero. Ninguém que não está prestes a morrer tem um olhar assim. Acho que por isso estou desse jeito, tão vulnerável. Não esperava encontrar piedade nem sofrimento vindos dele, aquele machão. Maldito. Ainda presente mesmo morto.

E como sou dramático, é claro que ficarei lúcido novamente. Homens viram mafiosos bandidos porque sabem que matar alguém é como uma droga. A primeira vez é sempre inesquecível, você sempre vai querer de volta as sensações únicas e prazerosas. Porque o sangue quente, a carne se rasgando, o último tremor... Céus, não existiriam açougueiros no mundo se eles não se sentissem donos de si rasgando um porco ao meio.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

condição única do ser humano

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Cara consciência, sinto muito, mas não consigo dormir.

Pretendia um momento de descanso, mas você não descansa momento algum. Sempre frenética, sempre ligada. Às vezes incomoda, sabia?

Eu terminei de ler um livro hoje. Terminei, assim como se termina uma refeição. O livro era interessante, a história me prendeu, mas acabou. Não preciso que você me lembre do livro a cada momento. Não preciso me lembrar da história quando estou lavando louça ou, pior, quando gostaria de ter um orgasmo com meu namorado. E isso vale para tudo o que você resgata nas horas mais impróprias: contas a pagar, ligações a fazer, o que me esqueci de comprar no supermercado ou que roupa vestir amanhã.

Portanto, vim formalmente pedir um descanso. Uma trégua. Um tempo de silêncio. Você pode fingir que está em um mosteiro. Pode fingir que cortaram sua língua e que você não tem mais nada a fazer a não ser ficar um tempo em silêncio. Um longo tempo, por favor. Preciso parar de sentir você maquinando tudo o tempo inteiro. Parece que não existe mais nada, não existe coração nem alma nem corpo, só cérebro. Um cérebro inquieto, infeliz com tudo o que vê. Para quê isso?

Só o que quero é paz. Não quero mais responder que não estou bem por motivos que só você conhece, que só você traçou assim. Quero uma liberdade talvez inédita, mas agora necessária.

Então, de todo o meu profundo coração – que você, invariavelmente, nem escuta mais -, fique em stand by. Retornarei a falar com você algum dia.

E boas férias.

domingo, 26 de dezembro de 2010

tinha alguém no meio do caminho. No meio do caminho tinha alguém.

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Ela estava seguindo seu caminho quando ele tomou o mesmo caminho que o dela. Se encontraram de repente, iniciaram uma conversa também de repente e foi assim, de súbito, que ela percebeu que seu coração não estava batendo rápido pela longa caminhada. Estava no mesmo compasso que o dele.
Ficaram ambos assim, nessa sintonia louca, por um longo tempo. Depois de mais de 730 crepúsculos, a sintonia se perdeu, ele pegou o caminho oposto e ambos ficaram assim, sozinhos, sem sintonia nenhuma.
Se viu caminhando a esmo, com o coração descompassado. Andou e andou e procurou voltar ao seu ritmo próprio, aos poucos, até que conseguiu. Respirou fundo e seguiu adiante.
E vai caminhar assim por muito tempo, com os olhos no horizonte, enxergando cada aurora e cada poente. Pensando apenas no horizonte e nas surpresas que ele traz.

explique

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Ela viu num filme e decidiu fazer igual porque achou poético. Arranjou uma garrafa vazia e pintou-a de azul porque achou mais calmo. Escreveu tudo o que sentia por ele num bilhete e colocou dentro da garrafa porque queria algo eterno. Esperou dar lua cheia pra jogar a garrafa no mar porque era supersticiosa. O mar levou a garrafa como leva um plâncton porque suas ondas são constantes. Ela acreditou fortemente que aquilo daria certo porque é sonhadora. A garrafa chegou ao lugar errado e ali ficou porque as ondas do mar não sabiam do destino. Ele ligou pra ela alguns dias depois porque sentiu saudade. Ela ficou feliz e se sentiu em paz porque pensou que ele lera a mensagem. A garrafa nunca foi encontrada e tudo acabou se resolvendo de outro modo porque, de vez em quando, certas coincidências simplesmente acontecem.

passageiro

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Olhou o cardápio várias vezes em busca do prato mais caro ou mais sofisticado. Hoje poderia gastar o quanto quisesse, ganhou essa noite e seu estômago merecia algo melhor que hamburguer e batata frita. Era uma noite solene. Merecia comer o que nunca comeu na vida, já que só teria essa oportunidade. Afinal, não é todo dia que funcionária pública pisa em um Cantaloup. Queria que seu organismo conhecesse novos sabores. Quem sabe, talvez um terrine de foie gras de pato pudesse dar ao seu corpo bases nitrogenadas e aminoácidos incríveis. Poderia ser, em uma pequena parte do seu corpo, semelhante à uma burguesinha que almoça ali todos os dias. Escolheu um magret de pato com purê de castanhas portuguesas. O prato veio, com um mínimo de comida. Por isso que rico é magro. Não se satisfaz com menos de mil reais em um restaurante como aquele. Mas mil reais é muito, até nas melhores famílias. Porque tudo acaba no banheiro. Comeu. Tinha gosto de alecrim, não gostou. Comeu com gosto, mas ainda estava com fome. Quer saber? Me dá um arroz doce, garçom. O mais simples que tiver, com canela. Agora sim. Nunca mais voltará em restaurante elitizinho como aquele. Preferia o furor de um rodízio por 20 reais. Você come o que quiser e sabe o que está comendo. A carne é carne, não é carne com molho de erva doce e mel francês. Estava pensando nisso enquanto voltava pra casa. Estava enjoada. Cabeça revirando. Parou o carro. E vomitou 231 reais na sarjeta.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

criancice

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A menina era menina e brincava com seus bonecos em uma bagunça pela cama de visitas. Estava sozinha em casa e, naturalmente, não esperava por ninguém a não ser seus pais, que voltariam do trabalho em breve.

Sendo menina, naturalmente também que não se importava com bagunças. Pelo contrário, era a necessidade básica de qualquer criança. E para se brincar do jeito que brincava, tinha que ser com tudo espalhado pela cama. A de visitas.

Até que o interfone tocou e tirou-a de sua concentração. Parou de brincar. Quem era? Tentou se lembrar, mas realmente não esperava ninguém. Foi atender.

- Quem é?

- Oi, Ana? É a Flávia!

- Oi!... - quem?

- Eu sou uma prima da sua mãe, aproveitei que estou por aqui para visitar vocês!

- Ahhh, sim, sim, tudo bem? - de fato nem lembrava dessa prima da sua mãe. Mas a mulher tinha uma voz calma. - Então, minha mãe ainda não chegou, mas você quer entrar, aí você espera ela?

- Pode ser então!

- Tá, vou abrir a porta.

Apertou o botão do interfone e ficou esperando a Flávia na porta. Ela chegou e abriu um sorriso:

- Oi Aninha! Como você cresceu! - e estendeu os braços esperando um abraço.

Ana estacou. Flávia era linda. Adulta, morena, toda educada e delicada. Enquanto ela, uma criança, toda suja de brincar e com roupa de ficar em casa. Sentiu-se envergonhada. Mas foi dar um abraço na prima da mãe.

- Você está sozinha aqui? O que está fazendo?

- Eu tava brincando no meu quarto...

- Ah, que legal. Posso ver?

Ih, a bagunça. Que vergonha deixar a moça bonita ver tudo aquilo esparramado pela cama, o que ela ia pensar, que era uma criança?

Bom, ela era uma criança. Mas não queria ser, não depois de ter visto a moça, queria ser igual a ela. Porque a moça não era menina, era moça.

- Pode sim, mas você espera só um pouquinho que eu tenho que arrumar uma coisinha? Já que eu te chamo.

Flávia deu uma risadinha.

- Tudo bem, eu espero.

Ana foi afoita pensando em como se livrar da baderna. Não tinha como guardar tudo, ia levar muito tempo e é falta de educação deixar a Flávia assim, esperando sozinha na sala. Foi no armário e pegou um lençol. Pronto, cubro tudo, pensou. Cobriu qualquer vestígio de brinquedo e deixou ali, um monte evidente de bonecos escondidos, ocultos como se fossem provas de um crime.

- Pronto, pode entrar!

E quando FLávia entrou, logo entendeu. Viu o monte na cama e o resto do quarto todo arrumado e deu um sorriso. Também foi criança, entendia dessas coisas. Mas Ana, não. Para Ana, a moça não era menina, era moça. E queria ser igual a ela.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

uísque filosófico

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Virou a dose de uísque de uma só vez. Desceu queimando a garganta. Mas tudo bem, dessa vez não queria on the rocks.

- Isso que você falou foi forte, cara.

Estavam há mais de quatro horas sentados na mesa do bar discutindo os mais variados assuntos. Naquele momento, travavam um duro embate entre sonho e realidade.

- Precisei até beber meu uísque inteiro.

- O que eu disse de tão forte?

- Vai dizer que não é forte achar que estamos vivendo em um sonho e não sabemos?

- Não é forte, é a realidade.

- Realidade ou sonho? Decida, homem.

- Realidade o que eu disse, sonho o que é.

- Mas o que você disse não é o que é?

- Calma, você tá me bagunçando.

- Tá vendo, nem você sabe direito o que tá dizendo.

- Claro que sei, você que tá retrucando.

- Mas eu não concordo com você não. Se estivéssemos em um sonho, eu não iria conseguir apertar o interruptor de luz. E também não existiria mulher feia no meu sonho.

- Mas aí é que tá, e se o sonho não for seu e sim de algum deus maluco e todas as coisas que acontecem com você que você chama de destino são na verdade mera imaginação do criador do sonho?

- Aí entram os terapeutas. É maluquice demais.

- Ah, foi só uma idéia.

Pediram mais uísque.

- Você já reparou como o tempo do sonho é tão diferente do tempo real?

- Eu acho isso sensacional. A mente é algo extraordinário.

- Pois é. Hoje, por exemplo. Naqueles quinze minutinhos da soneca, sonhei quase um dia inteiro. E acordei achando que tinha perdido horas deitado ali, mas não.

- Mas imagina se não fosse assim? Se os tempos fossem iguais? Não teria graça. A mente precisa descansar.

- Então homem, e não é muito louco a gente entrar em um novo mundo pra poder descansar? Pensa bem, é como se a gente fosse um retroprojetor que tivesse projetando as imagens do subconsciente na nossa mente. E é tudo tão real, tão sólido e ao mesmo tempo tão absurdo. Eu queria entender bem a fundo como isso funciona.

- Pensa se não sonhássemos.

- Tô pensando.

- Seria estranho. Dormiríamos no fade in e acordaríamos no fade out.

- Sensacional.

- O que, não sonhar?

- Não, essa explicação, fade in, fade out.

- Ah.

- Seria bem isso mesmo.

- Sonho é muito louco.

- Muito louco.

Ficaram os dois ali, em um minuto de silêncio na qual toda essa revelação era processada. Cada um absorto em suas próprias indagações a respeito da vida, das suas nuances, de todo o mistério que cercava cada mínima parte. Grande benção é vivermos com essa consciência do que nos cerca, pensaram os dois, sem saberem da improvável sintonia formada ali na complexidade misteriosa do cosmos.

Estavam prontos para mais uma rodada.

- Cara, olhei pro copo e lembrei de algo mais louco que tudo isso que falamos até agora.

- O quê?

- Que o universo é infinito. Você tem noção do que seria algo infinito? A gente não tem noção nenhuma disso.

- Por isso que vivemos nos eternos questionamentos da vida.

- Não só isso. Você já reparou que a solidez desse copo de uísque na verdade não tem nada de sólido? Ele tem milhões de átomos reunidos e os átomos são compostos por partículas que ficam girando em torno do núcleo, cara! Girando!

- E isso forma algo sólido! É maluco demais.

- É mais que maluco, é... inverbalizável. A gente tem um submundo inteiro no zoom de um copo, habitado por átomos. E se você avançar mais até o limite? Chega aonde?

- No nada.

- Não existe o nada no universo.

- O que chamamos de nada é, na verdade, o infinito.

- Tá vendo como não temos noção do infinito? O infinito contém infinitos mundos. Ele nunca seria nada.

- Será que não existe algum limite?

- Nós criamos a noção de limite, de barreiras e cercas. Ficamos pequenos demais quando pensamos na infinitude de tudo, aí nos conforta pensar que deve existir um limite em algum lugar.

- Mas não.

- Mas não, cara! Não tem! E provavelmente nunca iremos saber de fato se tem.

- Pensou se tivesse?

- Como que seria? Eu imagino algo como... como um lençol.

- Mas de certa forma seria impenetrável... agora imagina se fosse algo viscoso, tipo um gel. Você teria coragem de atravessar?

- Não sei... de qualquer forma seria uma estupidez não tentar, se você descobrir o que tiver do outro lado do gel vai ter que guardar só pra você, não vai dar pra voltar no Fantástico e contar a história.

- Seria absolutamente angustiante guardar só pra mim. Seriam aqueles dois minutos em que você descobre o segredo da vida e morre fulminado.

- É pra isso que vivemos, né? Pra descobrir o que há depois da morte, mas quando descobrimos já estamos mortos e não podemos contar pra ninguém.

- Angústias na vida e na morte, hein.

- Você atravessaria o gel?

- Se eu ainda tivesse consciência até esse momento, acho que sim. Mas atravessaria cantando Hey Jude.

- Hey Jude?

- Sei lá, é legal.

- Mas no espaço não tem som.

- Ah é, verdade. Que droga, então não faria sentido.

- Hahaha, você é louco, homem.

- E você, atravessaria?

- Com certeza. Pensou se do outro lado fosse infinitamente branco e invertido?

- Pior ainda: e se fosse um cubo minúsculo?

O outro virou a dose de uísque de uma só vez. Desceu rasgando a garganta.

- Isso que você falou foi forte, cara.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

o andarilho - parte I

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Era andarilho, não tinha rumo. O que o identificava de longe era o andar trôpego, meio pendido para a direita em função de uma de suas histórias enquanto homem solto nesse mundão. E o chapéu, grande, quase de mexicano. Costumavam chamá-lo de Viramundo, referência ao romance de Sabino, mas como usá-lo aqui seria falta de criatividade, fiquemos mesmo com seu nome de batismo, João Sapoão.

O Sapoão não foi sempre que foi andarilho e muito menos Sapoão. O apelido, que depois virou nome, nasceu durante uma aula de português. A professora estava fazendo a chamada:

- Gustavo!

- Aqui, professora.

- Hugo!

- Presente!

- João!

E o João, que estava entretido olhando para a porta, não ouviu.

- João! Estou te chamando!

João tentou avisar.

- Professora, olha o sapoão!

E ela não entendeu. Sapoão? Continuou a chamada. Quando olhou para o lado para ver algum aluno presente, viu o sapo, enorme, parado na porta da sala. A professora, pega de surpresa (afinal, nunca que ela pensaria que sapoão era um sapo muito grande), gritou e subiu na cadeira, ficando lá até tirarem o bicho da sala. Pelo furor que causou seu aviso inútil, João recebeu o apelido de Sapoão. E de tanto chamarem-no por esse aumentativo, virou sobrenome. Ninguém se lembrava mais do seu sobrenome original.

João tinha muitas histórias, mesmo quando menino. E por todas essas histórias, um tanto irreais se comparadas com as dos seus amigos, resolveu virar um caminhante errante, cigano profano, andarilho maltrapilho. Na estrada, era livre para criar suas próprias histórias e tê-las na quantidade que quiser. Queria fazer sua vida, com reviravoltas, antes do ciclo recomeçar. Foi por isso que aos 18 anos de idade, João meteu o dedo no seu bolo de aniversário e fez um pedido: "quero viver por aí e ter de companhia só a liberdade". Apagou a vela com um sopro só. E saiu de casa no dia seguinte, só.


FIM da parte I

o velho e o capitalismo

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O velho ficava atordoado de viver nesse século. Sempre dizia, soturno, antes das refeições, como se fosse uma prece:

- O capitalismo é desumano.

E os netos, pequenos o bastante para não entenderem o que significava capitalismo, se entreolhavam em silêncio, achando que o avô estava rezando para algum deus diferente.

Tanto rancor advinha principalmente de banco e supermercado. Odiava ir em supermercado. Ficava desolado de ver o quanto se pagava por verduras e legumes que ele poderia ter no quintal de casa. Ou então quando colocavam em oferta os piores tomates, cebolas e alhos. E todo mundo caía em cima. Sem contar as comidas enlatadas e processadas, era cada ingrediente que ele nunca ouvira falar. O que pensavam que éramos, porcos? O capitalismo é desumano.

Mas nada lhe dava mais ódio que banco. Todo mês debitavam R$ 20 de sua conta miúda de aposentado. Ele fez as contas e, no fim do ano, perdia R$ 240. Não teve coragem de descobrir quanto ele perdera em mais de 50 anos de conta. Para sua vida pacata, era muito dinheiro perdido. E para quê? De que adiantava colocar seu dinheiro em um lugar longe de roubos se cada mês lhe roubavam um pouquinho? Ganharia mais - ou não perderia - se guardasse tudo em um baú em sua casa. Seria mais fácil, não? O capitalismo é desumano.

Após muitas indagações e frustações, o velho resolveu radicalizar e pôr em prática o que andava tramando há tempos. Incorporou o espírito revolucionário de sua geração quando mais jovem e enfim mudou o que tanto o incomodava: decidiu tirar todo o seu dinheiro do banco e guardar naquele velho baú inutilizado que ficava no porão. Decidiu também tentar depender menos de supermercado e criou uma hortinha no quintal de sua casa. Chega de enlatados, doces e outros baratos afins. Queria retornar às origens.

Com isso, sentia-se bem mais leve. De agora em diante, pagaria tudo em dinheiro. Chega de cartões, chega de taxas, chega de leve 3 pague 2, chega de alimentos não naturais. Que tempos difíceis. O capitalismo é desumano, mas o velho encontrara um jeito de contorná-lo.

Certo dia, porém, ele estava com vontade de jogar pôquer na casa do compadre que morava ali do lado. Poderia aproveitar também para contar sua nova empreitada de economia que andava dando certo. Quanto mais pessoas desistissem, maior seria o espírito da revolução. E lá foi, para o pôquer e para a lábia.

No fim da noite, o velho conseguira fazer o compadre aderir ao movimento, ele também era contra todo esse sistema capitalista. Chegou em sua casa, abriu a porta e parou, estarrecido. Sua casa estava toda revirada. Correu para o baú, escondido no sótão, mas era tarde demais. Os ladrões tinham achado seu tesouro e levaram tudo, tudo. Não deixaram nem uma moeda para trás.

O velho, correndo o risco de ter sua pressão alta, foi ao único lugar onde ainda restava uma esperança. Fraco, tremendo de ódio, se dirigiu ao quintal. E o que já esperava tinha acontecido: seus pés de alface, de couve, as cenouras e as beterrabas, todos seus cuidadosos alimentos pisoteados. O velho chorou. Os ladrões haviam fugido pelo quintal. O capitalismo é monstruosamente desumano, pensou mais uma vez.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

edifica

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O prédio era pequeno, de apenas dois andares e ficava no centro da cidadezinha. Nâo tinha nem elevador. O pessoal se conhecia, conversavam. Batiam papo no meio da escada e às vezes dava para ouvir dos apartamentos o que diziam. Uma vez acabou a luz e as meninas que moravam no 301 erraram o caminho e foram parar no de baixo: abriram a porta e tudo, dando de cara com uma família assustada no sofá, olhando sem entender. Aí caíram na risada.

Lá era assim, quase uma irmandade. Um dia o 304 estava de portas abertas para receber uma geladeira nova. Era linda, grande e branca, e atravessava o corredor em todo seu esplendor. A dona do eletrodoméstico foi correndo na vizinha contar a novidade:
- Vem ver a geladeira que eu comprei, que chique!
E foram as duas. No outro mês foi a vez da vizinha compartilhar o novo sofá que comprou.

Vez ou outra vinham os pedidos: tem uma xicarazinha de açúcar pra emprestar, por favor?, Ih menina, tá faltando um ovo pro meu bolo e o mercado fechou, não tem pra emprestar não?, Leva tudo, pode ficar pra você, depois você me dá um pedaço de bolo.

Assim trocavam bolos, pães, doces, e confidências. Quando o pai do pessoal do 201 traiu a mulher, todos ficaram sabendo. As mulheres do prédio, quando o viam, davam um meio sorriso, um oi quase mudo, um olhar com o canto dos olhos. Ele ficava arrasado, coitado, tinha um apreço por todos naquele lugar. Tanto que saiu de casa, não aguentou a pressão. Muita mulher condenando-o num lugar só.

Porém, toda rosa tem seu espinho. E o espinho do Edifício P. Lanca de Souza - era assim que o prédio se chamava - era a dona. Uma velha gorda e nervosa, rica e avarenta, que cheirava a óleo de rícino. Ia subindo o preço do aluguel aos poucos, sempre alegando aumento dos custos, dos impostos. O pessoal se unia nas ofensas contra a senhoria, deram até apelido (que não é divulgado devido ao restrito sigilo dessa informação que circulava no recinto como confidencial). Mas tal união não pagava as contas. E ela fazia de tudo: quis pintar todas as portas, mas as pessoas não viam porquê. Estava bem assim. Temos que pagar a escola dos nossos filhos, a cor da porta não importa. Mas ela não ligava, ia lá e mandava pintar e depois enviava o valor da conta para todos. Era demais.

Cansados de tanta maluquice, foram saindo, família por família, daquele prédio, cada um procurando algum lugar novo para morar. E foi assim: cada um para o seu canto, sem mais irmandade, sem mais vizinhança. Nunca devolveram os ovos e a farinha a mais que emprestaram nem se fez mais bolo para pagar o vizinho.

E a velha...bem, a velha derrubou o prédio e construiu uma grande loja de conveniências no lugar e que vendia óleo de rícino, ninguém entendia bem o porquê. Mas morreu duas vezes mais rica.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

"a vida é um jogo"

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O menino estava parado no corredor, com os olhos vidrados. Aos poucos foram juntando lágrimas. Seus joelhos tremendo, os braços fracos. Andou pelas lojas novamente para procurar melhor. Nada. Sentou no banco da galeria e ali ficou, de cabeça baixa, chorando baixinho, para ninguém perceber. Tinha medo de gente grande.

Uma garota viu o menino lá, já há um tempo, sozinho, de cabeça baixa. Viu que ele entrava nas lojas e voltava para o banco, várias vezes. Decidiu ir conversar com o garoto.

- Oi. O que aconteceu? Eu vi que você entrou nas lojas procurando alguma coisa...

O menino levantou os olhos vermelhos de choro.

- Perdi minha mãe.

A garota ficou com olhos de pena.

- Ah...mas você vai achar sua mãe, você vai ver.

Ele pensou que nunca mais veria sua mãe.

- Ela vai voltar aqui para te procurar, fica calmo.

Ele pensou em como voltaria para casa.

- Posso fazer companhia para você até sua mãe chegar?

Ele acenou que sim. E pensou quão longe sua mãe deveria estar.

- Não precisa ficar assim, vai ver como vai ficar tudo bem.

Ele pensou quanto tempo teria que esperar.

- Então...qual seu nome?

Ele pensou na sua mãe chamando seu nome.

- Rafael.

- Ah, que legal. Quantos anos você tem, Rafael?

Ele pensou no seu bolo de aniversário com a vela 8.

- Oito anos.

- Oito anos...já é um rapazinho hein? E o que gosta de fazer?

Ele pensou nos seus amigos jogando videogame. E deu um sorriso. O Neto jogava muito mal, nunca conseguia passar aquela fase.

- Eu gosto de jogar videogame com meus amigos.

- E você joga bem?

Ele se lembrou quando venceu a última fase do jogo, seus amigos nunca conseguiram.

- Eu jogo. Consegui vencer a última fase, sabia? Era difícil.

- Uau. Então pensa que você está num videogame. Sua mãe é o chefão. O chefão sempre encontra com o mocinho no jogo não é? Então. Sua mãe vai vir te encontrar.

Ele pensou que essa garota era legal. Depois se lembrou que tinha um maço de cartas no bolso.

- Olha o que eu tenho aqui, trouxe meu baralho. Quer jogar?

- Vamos jogar!

Ficaram no banco, jogando cartas. Uma mulher gritou:

- Alguém sabe do meu filho? Tô procurando meu filho!

O menino reconheceu a voz da mãe. Achou a mãe! Aliviado, foi correndo abraçá-la. A mãe, uma mulher grande e nervosa, bufou de raiva. Pegou o menino pelo braço, deu um tapa.

- Não separa mais de mim, Rafael! Onde já se viu! Procurei que nem doida atrás de você, menino.

Foram embora, com o menino assustado. A garota ficou perplexa. A mãe era mesmo o chefão.

à espera

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Ela gostava quando diziam. Se não diziam, nunca durava muito. Não importava o que acontecesse, ela tinha que ouvir. Sempre, para não duvidar.

Um dia conheceu um rapaz. Deu uma rosa para ela no primeiro dia. Todo romântico, não largava dela. Começaram a namorar. Ele cheio de mimos, ela cheia de esperança. A qualquer momento ele ia dizer. Tão carinhoso, esse sim ia dizer. Vai dizer.

E era como se ela esperasse sentada, olhando no relógio. Como se tirasse uma folha do calendário a cada dia, esperando o dia em que finalmente dissesse.
Ele deu flores, chocolates, jantares, viagens, mas nada dela mudar aquele olhar azedo que lançava a ele a todo instante.

Acabaram não levando o namoro adiante. Ele nunca disse.

Até que um dia andando pela rua ela esbarrou em um homem. Forte, bonito. A atração foi instantânea. Ela lhe deu o telefone, ele ligou três semanas depois, quando achou o papel no bolso sem querer. Chamou-a para jantar, não tinha nada mais interessante para fazer mesmo. Ela perguntou se não podia escolher o restaurante. Escolheu um dos mais requintados, e ainda pagou a conta. Os olhos dele faiscaram.

No décimo quinto jantar, ele ajoelhou aos seus pés e abriu uma caixinha. Era um anel de noivado. Ela logo percebeu que o anel era fajuto. Mas aceitou, porque ela queria ouvir. Aceitava tudo para ouvir.

Numa quinta-feira ele ligou para ela ir até sua casa, para ver um filminho, que tal? Na verdade ele precisava de alguém que lavasse sua louça. E ela foi, porque precisava de alguém que dissesse. Mas ele não disse, não nesse dia.

Num domingo, meio cinza, ela o viu andando de mãos dadas com uma loirinha pela rua.

Não pensou duas vezes.

- Canalha!

Ele se assustou.

- Meu bem, você por aqui! Essa aqui é...a minha irmã. Ana.

Ela partiu para cima dele com toda fúria de mulher traída, tentando esmurrar cada parte livre de seu corpo.

Ele viu que só tinha uma solução para sair sem hematomas daquela história. Agarrou-a pelos braços, olhou-a nos olhos. Aproximou-se de seu ouvido e disse: eu te amo.

Enfim alguém dissera o que ela tanto quis ouvir. Casaram-se na semana seguinte.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

menina moça

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Ela perguntou à avó onde o avô tinha ido. Fazia tempo que não o via, achou que tinha viajado. Estava com saudade de sentar aos seus pés e ouvir suas histórias dos tempos de menino. A avó, com a voz embargada, não soube o que dizer, então respondeu a verdade: está no céu, nunca mais volta.

E a menina virou mulher antes mesmo da primeira menstruação.
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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