terça-feira, 28 de setembro de 2010

uísque filosófico

Virou a dose de uísque de uma só vez. Desceu queimando a garganta. Mas tudo bem, dessa vez não queria on the rocks.

- Isso que você falou foi forte, cara.

Estavam há mais de quatro horas sentados na mesa do bar discutindo os mais variados assuntos. Naquele momento, travavam um duro embate entre sonho e realidade.

- Precisei até beber meu uísque inteiro.

- O que eu disse de tão forte?

- Vai dizer que não é forte achar que estamos vivendo em um sonho e não sabemos?

- Não é forte, é a realidade.

- Realidade ou sonho? Decida, homem.

- Realidade o que eu disse, sonho o que é.

- Mas o que você disse não é o que é?

- Calma, você tá me bagunçando.

- Tá vendo, nem você sabe direito o que tá dizendo.

- Claro que sei, você que tá retrucando.

- Mas eu não concordo com você não. Se estivéssemos em um sonho, eu não iria conseguir apertar o interruptor de luz. E também não existiria mulher feia no meu sonho.

- Mas aí é que tá, e se o sonho não for seu e sim de algum deus maluco e todas as coisas que acontecem com você que você chama de destino são na verdade mera imaginação do criador do sonho?

- Aí entram os terapeutas. É maluquice demais.

- Ah, foi só uma idéia.

Pediram mais uísque.

- Você já reparou como o tempo do sonho é tão diferente do tempo real?

- Eu acho isso sensacional. A mente é algo extraordinário.

- Pois é. Hoje, por exemplo. Naqueles quinze minutinhos da soneca, sonhei quase um dia inteiro. E acordei achando que tinha perdido horas deitado ali, mas não.

- Mas imagina se não fosse assim? Se os tempos fossem iguais? Não teria graça. A mente precisa descansar.

- Então homem, e não é muito louco a gente entrar em um novo mundo pra poder descansar? Pensa bem, é como se a gente fosse um retroprojetor que tivesse projetando as imagens do subconsciente na nossa mente. E é tudo tão real, tão sólido e ao mesmo tempo tão absurdo. Eu queria entender bem a fundo como isso funciona.

- Pensa se não sonhássemos.

- Tô pensando.

- Seria estranho. Dormiríamos no fade in e acordaríamos no fade out.

- Sensacional.

- O que, não sonhar?

- Não, essa explicação, fade in, fade out.

- Ah.

- Seria bem isso mesmo.

- Sonho é muito louco.

- Muito louco.

Ficaram os dois ali, em um minuto de silêncio na qual toda essa revelação era processada. Cada um absorto em suas próprias indagações a respeito da vida, das suas nuances, de todo o mistério que cercava cada mínima parte. Grande benção é vivermos com essa consciência do que nos cerca, pensaram os dois, sem saberem da improvável sintonia formada ali na complexidade misteriosa do cosmos.

Estavam prontos para mais uma rodada.

- Cara, olhei pro copo e lembrei de algo mais louco que tudo isso que falamos até agora.

- O quê?

- Que o universo é infinito. Você tem noção do que seria algo infinito? A gente não tem noção nenhuma disso.

- Por isso que vivemos nos eternos questionamentos da vida.

- Não só isso. Você já reparou que a solidez desse copo de uísque na verdade não tem nada de sólido? Ele tem milhões de átomos reunidos e os átomos são compostos por partículas que ficam girando em torno do núcleo, cara! Girando!

- E isso forma algo sólido! É maluco demais.

- É mais que maluco, é... inverbalizável. A gente tem um submundo inteiro no zoom de um copo, habitado por átomos. E se você avançar mais até o limite? Chega aonde?

- No nada.

- Não existe o nada no universo.

- O que chamamos de nada é, na verdade, o infinito.

- Tá vendo como não temos noção do infinito? O infinito contém infinitos mundos. Ele nunca seria nada.

- Será que não existe algum limite?

- Nós criamos a noção de limite, de barreiras e cercas. Ficamos pequenos demais quando pensamos na infinitude de tudo, aí nos conforta pensar que deve existir um limite em algum lugar.

- Mas não.

- Mas não, cara! Não tem! E provavelmente nunca iremos saber de fato se tem.

- Pensou se tivesse?

- Como que seria? Eu imagino algo como... como um lençol.

- Mas de certa forma seria impenetrável... agora imagina se fosse algo viscoso, tipo um gel. Você teria coragem de atravessar?

- Não sei... de qualquer forma seria uma estupidez não tentar, se você descobrir o que tiver do outro lado do gel vai ter que guardar só pra você, não vai dar pra voltar no Fantástico e contar a história.

- Seria absolutamente angustiante guardar só pra mim. Seriam aqueles dois minutos em que você descobre o segredo da vida e morre fulminado.

- É pra isso que vivemos, né? Pra descobrir o que há depois da morte, mas quando descobrimos já estamos mortos e não podemos contar pra ninguém.

- Angústias na vida e na morte, hein.

- Você atravessaria o gel?

- Se eu ainda tivesse consciência até esse momento, acho que sim. Mas atravessaria cantando Hey Jude.

- Hey Jude?

- Sei lá, é legal.

- Mas no espaço não tem som.

- Ah é, verdade. Que droga, então não faria sentido.

- Hahaha, você é louco, homem.

- E você, atravessaria?

- Com certeza. Pensou se do outro lado fosse infinitamente branco e invertido?

- Pior ainda: e se fosse um cubo minúsculo?

O outro virou a dose de uísque de uma só vez. Desceu rasgando a garganta.

- Isso que você falou foi forte, cara.

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