sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

ao Romantismo:

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Goethe, meu irmão. Nós, eternos apaixonados pela paixão. Não há de percebermos quão casto tornou-se esse insigne sentimento? Não, não há loucuras e nem mortes decretadas por amor, mas sim, antes de tudo, a maliciosa consciência a fazer-se de sábia ao resguardar os gestos. Que solene é este espetáculo! Vivemos entre os eruditos covardes, temerosos da dor, incapazes de se entregarem ao verdadeiro excesso, à verdadeira virtude que é amar. A dor, caríssimos, existe unicamente como condição por deleitar-se de algo tão puro e febril; ela é, portanto, estritamente necessária. Tal qual a morte que espreita uma abelha depois de sua reprodução; tal qual a vida, que nos permite sentir o dissabor do fim após décadas saboreando a existência. Jovem Werther, sofra. Não só porque do sofrimento vem a melhor escrita, mas porque é só através dele que podemos compreender quão humano fomos. Há de um dia os pobres mortais entenderem essa derradeira paixão que sentimos e, quem sabe então, o lídimo Romantismo deixe de ser palco de céticas risadas...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

notícia

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HOMEM PASMA SEGUNDA-FEIRA


Acordou, beijou a mulher na face rubra,
Deixou na caneca a marca da boca muda, comeu o pão adormecido,
Saiu de casa com a maleta cinza, o chapéu meio de lado, a barba por fazer.

Assoviou bossa-nova, a caminho do edifício,
Subiu no andaime, tão logo caiu
Segunda-feira, estatelado no asfalto, atrapalhou o trânsito,
Ainda acordou achando que era domingo.

Desde então, vive desorientado.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

sonhos em um dia de verão

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Era um fim de tarde, tempo fechado, restos de chuva pelo asfalto. Ainda dava pra sentir o cheiro de grama molhada e o céu clareava um amarelo escondido. Itália. Faltava era um violino, chapéus, mesas de café pelas calçadas, italianas e seus vestidos, acompanhadas de homens altos. Depois, virando a esquina, o claro do céu já estava escuro, cinza, as nuvens fechadas torcendo algumas últimas gotas. Inglaterra. Faltava eram cachecóis, luvas nas mãos a segurarem um copo quente de chocolate, risadas sobre uma varanda de frente para a metrópole. Mais adiante, o dia foi cedendo já seu lugar à noite, a chuva se esgotava de tanto molhar e a brisa ia surgindo fresca, com as nuvens adormecidas. Espanha. Faltava era um restaurante decorado com velas, fonte no meio de uma pracinha com casais se divertindo solitários, vendedores com suas frutas e peixes frescos.

Aí a noite pintou tudo de preto, a lua não surgiu e o que faltava era voltar caminhando para a casa com passadas lentas de quem precisa tragar tudo uma última vez antes de parar de sonhar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

"poema é coisa que se faz vendo"

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O cego se apóia no cego e juntos começam a andar.
Um ergue a cabeça, de olhos fechados, o peito sobe e desce enchendo-se de ar.
- Escuta esse cheiro.
O outro respira, toca o ar, sorri, passa a mão na cabeça.
- Tô ouvindo. Parece vermelho.

domingo, 30 de outubro de 2011

tupiniquim

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Rodou o LP de Martinho da Vila, saiu sambando pela casa. Todo mundo é bamba, todo mundo bebe, todo mundo samba. Contaminou-se pelo ritmo, trocou por Jair Rodrigues e foi à janela paquerar. Deixe que digam, que pensem, que falem, deixe isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem? O que tem é que à janela não conseguiu a atenção desejada, quis ouvir a voz de Mario Sousa Marques Filho: reconhece a queda e não desanima, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Achou que o incidente na janela poderia ser bem descrito por Noel Rosa, trocou o LP. E eu pergunto, com que roupa?, com que roupa que eu vou, pro samba que você me convidou. Depois, sem fôlego para sambar, mudou de disco, Chico Buarque, exigia sentar na poltrona e ler Clarice com um cigarro entre os dedos. Mulher, você vai gostar, tô levando uns amigos pra conversar. E depois de tudo isso o que pede é botar Cartola, porque mesmo com samba chega a hora inadiável de se angustiar na varanda, com o pôr-do-sol a ouvir a última melodia do dia. Ouça-me bem amor, preste atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos, tão mesquinho. Vai reduzir as ilusões a pó...

domingo, 16 de outubro de 2011

blues

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Começava devagar.
Saboreava o gosto puro de cada nota com a paciência de um meticuloso em busca da iluminação. A iluminação musical. E quando pensava nisso o calor ia subindo e emanava pelos poros... e então as notas exigiam amor e eram tocadas como mulheres...ia subindo....subindo...até atingir o pico, a libertação clássica de tudo o que se prende, era uma viagem mental e corporal, dedilhava com a mesma rapidez com que o suor escorria da sua testa, agora envergada, tentando alcançar as notas mais profundas da composição que era antes de tudo sua própria alma que ele precisava cavar cada vez mais fundo até encontrar aquilo que todos passam a vida procurando aquilo que as fazem perder o ar e o chão até se sentirem caindo em um abismo de total compreensão dos sentidos onde o mínimo toque de pele arrepia a espinha enquanto tudo isso é engolfado pelo som febril que nasceu nas ruas e nos becos onde se encontram a mais sincera e profunda arte já feita porque representa os olhos da alma boêmia alma essa mesma alma que agora se enche de iluminação por ter enfim encontrado sua sintonia com as notas musicas expelidas agora em decrescente sensações...que vão se rebaixando...tornando-se inaudíveis...mas totalmente sensitivas...o som do mais rele ser humano pisando nessa superfície fria...quando por dentro está cultivando calor...e tudo termina na última nota, angustiada, por onde terminam todos os fins existentes.....

sábado, 17 de setembro de 2011

relato sobre o amor

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Um dia, descobriu: haviam mumificado o amor. Ele já tinha se esvaído do coração dos nobres, morto, sem gosto nem cheiro. E só restaram as cinzas, ah! outrora cinzas de fênix...Manteve-se a morte para eternizar a beleza. Que beleza, senão a amarga realidade da decomposição? Banhou-se o amor em empirismo, gestos e dúvidas para resguardar esses olhos reveladores da alma, mas por dentro estão podres, estão podres porque há muito já morreram. E essa podridão comicamente perturbadora consumiu os nobres a tal ponto que se esqueceram que é do adubo que nasce a mais singela forma de vida.

domingo, 28 de agosto de 2011

atravessando gerações

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A Sra. Silva correu para contar ao marido:

- Deu positivo! Deu positivo! Estou grávida!

Felicíssimos, os dois. Não se cabiam de alegria. Nem sabiam o que fazer. Compramos já o enxoval? Que cor? Que escola matricular a criança? Precisamos guardar dinheiro para quando for para o exterior? E a faculdade? E o casamento?

A vida do bebê passou diante de seus olhos em uma fração de segundo. Era uma boa notícia, mas não seria fácil criar um filho.

A primeira preocupação, no entanto, foi a mais simples, mas talvez a que poderia trazer mais conseqüências definitivas: a alimentação.

O que uma grávida tem que comer para não parir um bebê gordo e sonolento? A Sra. Silva foi junto com o marido à uma especialista e saiu de lá franzindo o cenho:

- Nunca me senti tão brasileira. Ter que ficar comendo verde e amarelo... Sei não, meu bem, vai ser difícil para mim. Muito difícil.

O marido respondeu com ar grave:

- Para mim também não está fácil. Tenho que comer essas coisas verdes todas com você. Ah, os lanches...Mas temos que pensar no bebê, é pelo bem dele. Tudo é ele agora.

E assim os meses se passaram, a barriga crescendo cada vez mais. A Sra. Silva já não agüentava mais e um dia pediu ao marido, toda dengosa:

- Meu bem... Podemos ir ao McDonald’s? Só dessa vez, vai...

Ele limitou-se a olhá-la, com desdém.

- Por favor, desejo de grávida.

E a frase surtiu efeito como toda grávida sabe fazer.

A contragosto, o marido levou-a ao McDonald’s. “Mas será a última vez”, pediu ele, “não quero meu filho com cara de Big Mac quando nascer”. Para agradar o marido, a Sra. Silva pediu a opção mais saudável do cardápio: um McChicken.

- Olha, querido, é frango grelhado, tem menos gordura. Ah, senhor, o combo acompanha um refrigerante de 500ml tá?

A primeira mordida trouxe um êxtase danado, tamanho bem-estar aquela comida dava à ela. O bebê até chutou. “De felicidade”, supôs ela. Devorou em pouco tempo. Pelo menos o filho não ia nascer com cara de Big Mac.

Porém, a Sra. Silva não esperava que o primeiro lanche em muitos meses trouxesse uma dependência muito forte. Ela não podia ver as cores vermelha e amarela juntas que seu corpo já comichava. Um dia, em uma dessas vontades, coçou a bochecha. “Agora meu filho vai ter uma marca de nascença em forma de Mc Donald’s”, pensou aflita. Era o fim.

A solução encontrada foi muito simples. Comeu escondida do marido, assim evitava os comichões e as marcas de nascenças que poderia gerar com esse desejo todo. Assim fez até o fim da gravidez, sem nunca gerar qualquer desconfiança.

No nono mês da gestação, a Sra. Silva foi ao hospital para o parto. Voltou para a casa com um lindo garotinho nos braços. Rechonchudo, com uma pinta engraçada na bochecha.

- Que pinta é essa? – observou o marido – Parece uma letra...

- Ah, vai ver o bebê adivinhou a letra do nome dele...

- É, vai saber...

E o assunto morreu.

Muito tempo depois, o pai estava brincando com o filho quando o pequeno falou:

- Méquiti!

O pai quase caiu para trás.

- Meu bem! Ele falou! A primeira palavra, vem ouvir!

A Sra. Silva veio correndo, emocionada.

- Fale de novo para a mamãe escutar, filho.

- Méquiti!

Os dois se entreolharam. O que será que era isso?

- Poxa, esperava um “papá” da primeira vez – suspirou o marido.

- Com o tempo ele aprende, se acalme.

- Méquiti! – gritou o bebê.

- O que, filho?

- Méquiti! – e começou a chorar.

- Meu Deus, o que está acontecendo?

O pai ficou em silêncio. Aí disse, soturno:

- Querida.

- Sim?

E o bebê chorava.

- Você entendeu o que ele falou?

- Não... você entendeu?

- Entendi.

Silêncio. E terminou de dizer, grave:

- Ele disse McChicken.

domingo, 24 de julho de 2011

o nó de cada dia

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É um desejo de negar tudo e voltar ao estado primitivo da consciência.

É um pessimismo que alimenta quase como o sangue te faz vivo. Um pessimismo não de viver, mas da vida como se faz até aqui.

A vida dos chicletes, pequenas gomas de petróleo que alimentam os olhos e ocupam a boca, esta mesma, que se preocupa em mascar corantes e não soltar palavras. Essa vida que virou a dos grandes capitais - vilões ou mocinhos? - felizes por nos brindar com um copo de café com açúcar branco logo de manhã. Branco por estética: a criação da noção de pureza com soda cáustica. Um verso como este parecido com uma notícia dos telejornais. Frases curtas, ponto final aqui, dois pontos ali. Afinal, o cachorro da titia também precisa entender o noticiário.
O ser vivo moderno é empregado se pagou para outros lhe ensinarem coisas que poderia aprender sozinho. Mas autodidata - o que é autodidata? - é uma palavra quase extinta do vocabulário daqueles que estão atrás das mesas de mogno. O ser vivo é pago para dizer que uma planta não é um outro ser vivo - curiosamente semelhante - mas um combustível, um alimento para seus grandes filhos de aço, tão crianças que cospem os restos no céu.

Livros de monges, histórias de Jesus e canções natalinas são última tendência. Evocam lá no fundo aquele sonho lúdico, já empoeirado, de belas montanhas, casinhas de madeira e existência pacífica. Fios, aço, ferro, fibra ótica, álcool, petróleo, glutamato de sódio são palavras que você queria esquecer para sempre.
Sabe o impossível? Ele existe. Ele existe, e vive dentro de mim.

domingo, 26 de junho de 2011

naturalmente

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- Eu vou embora. - soltou, com aquela voz gelada de fúria contida. Não olhou diretamente nos olhos dele, ficou contando os dedos dos pés.

Num dia, era uma mulher. Falava como se as palavras fossem notas musicais, suspirando melodias. Seu olhar tinha um brilho intenso de promessas absurdas. Era mais, um pouco e sempre mais.

- Pensando melhor, vá embora você. - e abriu a porta de casa, empurrando com pressa o homem que estava parado à sua frente, perdido e sem pressa nenhuma.

No outro dia, outra mulher. A cansada, preguiçosa e pavorosa. Que perdeu de repente todo o fulgor e o calor que emanava do seu corpo. A que agora acorda o homem ao seu lado aos gritos e o tranca para fora de casa, nu, surpreso e desprevenido.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

1506

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- Papai, descobri o que os sonhos são. É porque seus olhos viram para o outro lado e você passa a enxergar dentro da sua própria cabeça. E tudo não passa de reflexos do que se passa lá...

terça-feira, 14 de junho de 2011

século XXI

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O oxigênio estava insuficiente nas suas células quando acordou com ácido lático nas fibras musculares. Dores nos músculos. Correndo, foi para o armário novo com cheiro de tinta tomar um remédio. Apnoprastil, princípio ativo diretamente absorvido pelo organismo em alguns poucos minutos. Logo a corrente sanguínea carregaria o CG-T, que inibiria suas dores e assim ela poderia ir para o trabalho sem se preocupar.

Comeu uma maçã no espaço de tempo entre trocar de roupa e abrir a porta de casa, enquanto chamava o elevador e procurava a chave do carro, tudo ao mesmo tempo. Adrenalina corria pelo sangue enquanto tentava absorver o remédio e se reorganizar para poder quebrar as pontes de hidrogênio dos ácidos ribonucléicos da maçã. Mas ela em nenhum momento pensou em tudo isso: só queria era chegar no estacionamento.

Era muito cedo ainda para seu organismo processar essa grande quantidade de informações e poder mandar seus alertas rotineiros. Dessa forma, ela ligou o rádio para ouvir uma música enquanto passava batom no trânsito congestionado. Seus ouvidos captavam a música e seu cérebro se dividia em manter a atenção no movimento do carro à frente, demarcar a linha imaginária até onde o batom deveria ser pintado e processar os pensamentos frenéticos dela à respeito do seu atraso no trabalho.

O carro à frente andou, ela não viu, o carro de trás buzinou. Seu cérebro guinou para voltar a manter a atenção nos três fatores, agora com mais alguns em jogo, já que os carros começavam a andar. Acelerador, freio, câmbio, retrovisor. Para aumentar a carga de trabalho do cérebro, as células do corpo já estavam absorvendo o remédio e seus impulsos sendo mandados para o comando central. Que, sobrecarregado de tanta
tarefa, ainda tinha que desligar alguns neurônios responsáveis pelas dores nos músculos.

Chegou ao trabalho atrasada quase meia hora. Seu chefe gritou. As ondas mecânicas do som passaram pelo labirinto e chegaram até o cérebro, onde foram processadas com um alto grau de decibéis. Era demais, era muito, não ia aguentar. Então seu organismo deu seu primeiro sinal: tanta contração muscular começou a causar uma pressão em ambos os lados da cabeça.

- Ah, merda, mais essa agora. Aposto que foi aquela merda de trânsito. Alguém tem aspirina?


E mais um remédio entrou para seu organismo.








obs.: os fatos biológicos (que provavelmente não estão em conformidade com a realidade) serviram apenas de ilustração para essa história. Óbvio.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

por um desvio de interpretação

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A perna esquerda toda lhe doía a cada momento que pisava com um ruído metálico no chão. Andava arrastando-a, puxando a calça para tentar uma mobilidade maior, talvez até ganhar uma certa velocidade. Por que essa é a grande palavra, né? Todos ao seu redor caminhavam a passos rápidos, a qualquer hora; e ele sempre atrás, lento, arrastado. Não se importava com isso conscientemente, mas sua mente sim. Sentia-se atrasado e inútil, então tentava arrastar sua perna cada vez mais forte, mesmo que doesse. E ah, doía. Doía porque não era uma perna, era uma barra de ferro. O corpo não foi feito para andar em uma barra de ferro. Mas tinha que andar, tinha que correr, porque morava em uma cidade onde ficar para trás era arcaico.

Chegava em casa desgastado. De cansaço físico e mental; físico pela correria e mental porque era um exercício pessoal sair na rua todo dia e agüentar os olhares assustados. Achava que tinha superado isso, todos acham quando vêem um homem de quase quarenta anos arrastando uma perna metálica. Mas só ele sabe que nunca vai superar. Nunca vai superar porque as pessoas vão continuar a tratá-lo fingindo que esse problema não existe, o que para ele era muito pior do que de fato considerá-lo. Ninguém perguntava se precisava de ajuda. Olá, estou arrastando minha perna em um dia de chuva e molhando metade do meu corpo, poderia me ajudar? Ninguém. O que raios as pessoas pensavam? Ele não se sentiria envergonhado por tentarem ajudar. Porque ele, visivelmente, precisava de ajuda.

E achava o papo de superação um discurso de fácil resultado na boca de homens inteiros. Ele era metade, sem uma perna e consumido pela amargura. Não via por quê isso deveria ser normal. Não via por quê tinha que encarar naturalmente. Não conseguia. Se sentia catalogado na categoria de deficiente, palavra que remetia à ineficiência. Ele era ineficiente? Só porque demorava para andar e não era compatível com a imagem perfeita vendida pelas propagandas?

É, se sentia mal. Mas mal sinto eu, por tomar as dores desse homem que encontrei no meu caminho e escrever essa pequena crônica, como se o desabafo fosse dele mesmo. Tudo isso acabou sendo a perna metálica da minha própria mente, que anseia por se exibir através de verbos em terceira pessoa, pessoas estas que muitas vezes são reais. Não sou poeta, deixo a mente trabalhar cambaleante, do jeito que consegue. É na impulsividade que tudo surge.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

aquele pensamento, sabe?

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É igual o que a água de côco se tornou: de algo fresco, geladinho e natural, virou uma bebida com gosto de conservante. Tá me entendendo? É assim que me sinto em relação a você. Sua amargura, agora, tem gosto de antioxidante ácido ascórbico. E eu desgosto absolutamente.

domingo, 27 de março de 2011

vadiagem

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É noite e a sarjeta cheira a lixo.
Lixo, cigarro e espetinho de carne.
Você nunca deseja fazer parte disso tudo, mas sem querer, isso se torna parte de você.
A prostituta que não sente frio na esquina, o dono da barraquinha velha e suja de pastel, o cobrador do ônibus que circula a uma da manhã, nenhum desses indivíduos renegados é diferente de você ou do engravatado desinteressante com quem dividimos o mesmo meio-fio todos os dias de manhã.

Amarguradamente, segurando-se onde quer que valha para não cair com as curvas do ônibus. Uma mão que encosta, um cabelo que esvoaça e você se afasta, como que contaminado. Rejeitar o toque faz parte do seu dia, como se já não importasse também suas passadas largas de quem vai e não sabe pra onde, sua cara fechada como se o sol lhe batesse constantemente nos olhos mesmo à noite ou seu bom dia contido pela manhã.

E é pensando nisso tudo que volta para a casa de madrugada. Não importa a hora, a vida imunda ainda pulsa pelos becos, fétida, com suas mil promessas vãs de liberdade fugidia.
A noite é o mundo dos rejeitados.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

cabra diabo

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- trouxe as vacas, mas perdemos quatro
também trouxe as ovelhas, mas as raposas pegaram três
as galinhas saíram perdendo: morreram seis
mas nossos homens, mais fatigados que todo o resto
restaram todos, embora a fome e a pobreza
façam com que morram um a um, assim como também
morreram as vacas, as ovelhas, as galinhas

O capataz pousou-lhe a mão na cabeça, abençoou-o com um olhar doce de piedade e suspirou fundo, como se o ar lhe doesse:

- é o fim dos tempos, meu bom homem. É o fim dos tempos.

E dizendo isso, despediu-se com um longo aceno de mão, como se aquele fosse o último momento antes do final dançante das luzes do apocalipse.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

lótus

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Eu te quero. Não, pensando bem, não te quero. Quero é tudo isso que te forma. Sim, toda essa calma, todo teu brilho. Quero o jeito com que lida com a vida, as tuas manias, teus vícios. A materialização do teu ser junto do meu, é possível? Então na verdade eu te quero, quero te engolir, quero ter você pulsando nas minhas veias, presente em cada ramificação do meu corpo, cada respiração. Quero te ter em toda a plenitude, todo o excesso, para me fartar até não poder mais e quando chegar a hora em que tudo acaba eu acabe no chão, desgastada, enquanto você vai embora pelo sopro, deixando dolorosamente minhas veias secas, sem vida, sem sopro, sem nada.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

são paulo

3opiniões
Quando me dá agonia, eu como. Abro a geladeira, penso mais do que eu deveria pensar, reflexões filosóficas enquanto me indago o que vou comer, que combinação excepcional posso fazer com a comida que tenho. Quando preciso pensar, mais do que abrir a geladeira, eu tomo banho. Aquela água quente caindo na pele, amaciando os músculos, o silêncio, só você e a água. O chuveiro já me viu cantar, chorar, falar sozinha, ter idéias esplêndidas e anotar na parede úmida ou no box para não perdê-las. É o lugar onde você coloca a cabeça em ordem. Quando não consigo desenhar, eu escrevo. Costumava ter com os traços uma relação mais forte do que com as letras. Era como se mão e lápis fossem uma só, agora minha companheira mesmo é a caneta. O lápis virou amante, não muito funcional, que só procuro quando sinto que dessa vez o desenho sai. Amante desgastada, enferrujada, por anos de prática quase integral com a escrita.

Quando estou com tédio, vou ao supermercado. E distraidamente, perco uma hora do meu dia entre prateleiras e prateleiras, em busca do menor preço, das ofertas, de algum produto diferente, tudo em meio a um monólogo inteiramente pessoal e abstrato. Vou ao supermercado também para pensar na vida ou em algo que está me empacando, como a idéia para um roteiro. Se o banho, que é curto, não adiantou, vou ao supermercado. E penso lá.

Se nada resolveu, eu viro um ser humano amorfo. Que senta, anda, olha e come meramente porque são funções vitais. Mas entre isso e uma alga não há sequer uma diferença. Sentar no sofá e passear pelos canais, até perceber que na última meia hora você não fazia idéia do que estava assistindo porque sua cabeça estava longe dali. Perceber que o teto de seu quarto tem rachaduras que lembram mangás. Sentir-se íntimo dos objetos da casa, que parece que te olham no seu profundo silêncio contemplativo e você quase os ouve dizer "eu estou me divertindo muito e você?". E quando você sente isso, a única coisa que deseja é virar um vaso de mesa, sem obrigações nem funções vitais. Um vaso, que observa tudo, sem sentir dor por estar na mesma posição há tempos, sem sentir fome nem sono. Pensando bem, quase Deus. É isso que você quer ser.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

parênteses

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Então você fica quase inconsciente, quase surdo, só dando ouvidos à sua cabeça. Ela dita as palavras e você só as coloca no papel, na ordem em que vão surgindo mentalmente. No final, o texto todo pode não fazer sentido nenhum, mas daí é só você dizer que seu estilo é parecido com o de Caio Fernando Abreu que todos se calam com um suspiro de alívio, refeitos do susto por acharem que você provavelmente não teve aulas de coesão e concordância. Bobagem. É tudo uma bobagem. Escrever é pura masturbação do escritor. Um prazer só dele e criado para ele, os leitores são meros passageiros que gostam de dar uma volta nesse navio. Ou barco. As convenções ortográficas e linguisticas podem ser arbitrariamente suspendidas se assim o autor quiser, sob uma justificativa qualquer. "Ah, é o pós-modernismo contemporâneo", "Pois o comunismo estético...", "Meu estilo é baseado na livre-associação de palavras...". Ninguém discordará, pois a escrita de alguém é a coisa mais pessoal já publicada. Os autores só lutam para tornar sua história a menos parecida possível com uma piada interna.

um casamento harmonioso

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- Cale sua maldita boca, mulher. Vai pra cozinha, faz alguma coisa, mas me deixa em paz, puta que pariu.

- Quando foi que me casei com você?

- Faz muitos anos que eu te aguento.

- Só pra eu me lembrar de não cometer esse erro novamente quando eu pegar a arma e atirar nessa sua cara de porco velho.

E saiu batendo os pés.
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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