sexta-feira, 13 de agosto de 2010

o andarilho - parte I

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Era andarilho, não tinha rumo. O que o identificava de longe era o andar trôpego, meio pendido para a direita em função de uma de suas histórias enquanto homem solto nesse mundão. E o chapéu, grande, quase de mexicano. Costumavam chamá-lo de Viramundo, referência ao romance de Sabino, mas como usá-lo aqui seria falta de criatividade, fiquemos mesmo com seu nome de batismo, João Sapoão.

O Sapoão não foi sempre que foi andarilho e muito menos Sapoão. O apelido, que depois virou nome, nasceu durante uma aula de português. A professora estava fazendo a chamada:

- Gustavo!

- Aqui, professora.

- Hugo!

- Presente!

- João!

E o João, que estava entretido olhando para a porta, não ouviu.

- João! Estou te chamando!

João tentou avisar.

- Professora, olha o sapoão!

E ela não entendeu. Sapoão? Continuou a chamada. Quando olhou para o lado para ver algum aluno presente, viu o sapo, enorme, parado na porta da sala. A professora, pega de surpresa (afinal, nunca que ela pensaria que sapoão era um sapo muito grande), gritou e subiu na cadeira, ficando lá até tirarem o bicho da sala. Pelo furor que causou seu aviso inútil, João recebeu o apelido de Sapoão. E de tanto chamarem-no por esse aumentativo, virou sobrenome. Ninguém se lembrava mais do seu sobrenome original.

João tinha muitas histórias, mesmo quando menino. E por todas essas histórias, um tanto irreais se comparadas com as dos seus amigos, resolveu virar um caminhante errante, cigano profano, andarilho maltrapilho. Na estrada, era livre para criar suas próprias histórias e tê-las na quantidade que quiser. Queria fazer sua vida, com reviravoltas, antes do ciclo recomeçar. Foi por isso que aos 18 anos de idade, João meteu o dedo no seu bolo de aniversário e fez um pedido: "quero viver por aí e ter de companhia só a liberdade". Apagou a vela com um sopro só. E saiu de casa no dia seguinte, só.


FIM da parte I

o velho e o capitalismo

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O velho ficava atordoado de viver nesse século. Sempre dizia, soturno, antes das refeições, como se fosse uma prece:

- O capitalismo é desumano.

E os netos, pequenos o bastante para não entenderem o que significava capitalismo, se entreolhavam em silêncio, achando que o avô estava rezando para algum deus diferente.

Tanto rancor advinha principalmente de banco e supermercado. Odiava ir em supermercado. Ficava desolado de ver o quanto se pagava por verduras e legumes que ele poderia ter no quintal de casa. Ou então quando colocavam em oferta os piores tomates, cebolas e alhos. E todo mundo caía em cima. Sem contar as comidas enlatadas e processadas, era cada ingrediente que ele nunca ouvira falar. O que pensavam que éramos, porcos? O capitalismo é desumano.

Mas nada lhe dava mais ódio que banco. Todo mês debitavam R$ 20 de sua conta miúda de aposentado. Ele fez as contas e, no fim do ano, perdia R$ 240. Não teve coragem de descobrir quanto ele perdera em mais de 50 anos de conta. Para sua vida pacata, era muito dinheiro perdido. E para quê? De que adiantava colocar seu dinheiro em um lugar longe de roubos se cada mês lhe roubavam um pouquinho? Ganharia mais - ou não perderia - se guardasse tudo em um baú em sua casa. Seria mais fácil, não? O capitalismo é desumano.

Após muitas indagações e frustações, o velho resolveu radicalizar e pôr em prática o que andava tramando há tempos. Incorporou o espírito revolucionário de sua geração quando mais jovem e enfim mudou o que tanto o incomodava: decidiu tirar todo o seu dinheiro do banco e guardar naquele velho baú inutilizado que ficava no porão. Decidiu também tentar depender menos de supermercado e criou uma hortinha no quintal de sua casa. Chega de enlatados, doces e outros baratos afins. Queria retornar às origens.

Com isso, sentia-se bem mais leve. De agora em diante, pagaria tudo em dinheiro. Chega de cartões, chega de taxas, chega de leve 3 pague 2, chega de alimentos não naturais. Que tempos difíceis. O capitalismo é desumano, mas o velho encontrara um jeito de contorná-lo.

Certo dia, porém, ele estava com vontade de jogar pôquer na casa do compadre que morava ali do lado. Poderia aproveitar também para contar sua nova empreitada de economia que andava dando certo. Quanto mais pessoas desistissem, maior seria o espírito da revolução. E lá foi, para o pôquer e para a lábia.

No fim da noite, o velho conseguira fazer o compadre aderir ao movimento, ele também era contra todo esse sistema capitalista. Chegou em sua casa, abriu a porta e parou, estarrecido. Sua casa estava toda revirada. Correu para o baú, escondido no sótão, mas era tarde demais. Os ladrões tinham achado seu tesouro e levaram tudo, tudo. Não deixaram nem uma moeda para trás.

O velho, correndo o risco de ter sua pressão alta, foi ao único lugar onde ainda restava uma esperança. Fraco, tremendo de ódio, se dirigiu ao quintal. E o que já esperava tinha acontecido: seus pés de alface, de couve, as cenouras e as beterrabas, todos seus cuidadosos alimentos pisoteados. O velho chorou. Os ladrões haviam fugido pelo quintal. O capitalismo é monstruosamente desumano, pensou mais uma vez.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

edifica

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O prédio era pequeno, de apenas dois andares e ficava no centro da cidadezinha. Nâo tinha nem elevador. O pessoal se conhecia, conversavam. Batiam papo no meio da escada e às vezes dava para ouvir dos apartamentos o que diziam. Uma vez acabou a luz e as meninas que moravam no 301 erraram o caminho e foram parar no de baixo: abriram a porta e tudo, dando de cara com uma família assustada no sofá, olhando sem entender. Aí caíram na risada.

Lá era assim, quase uma irmandade. Um dia o 304 estava de portas abertas para receber uma geladeira nova. Era linda, grande e branca, e atravessava o corredor em todo seu esplendor. A dona do eletrodoméstico foi correndo na vizinha contar a novidade:
- Vem ver a geladeira que eu comprei, que chique!
E foram as duas. No outro mês foi a vez da vizinha compartilhar o novo sofá que comprou.

Vez ou outra vinham os pedidos: tem uma xicarazinha de açúcar pra emprestar, por favor?, Ih menina, tá faltando um ovo pro meu bolo e o mercado fechou, não tem pra emprestar não?, Leva tudo, pode ficar pra você, depois você me dá um pedaço de bolo.

Assim trocavam bolos, pães, doces, e confidências. Quando o pai do pessoal do 201 traiu a mulher, todos ficaram sabendo. As mulheres do prédio, quando o viam, davam um meio sorriso, um oi quase mudo, um olhar com o canto dos olhos. Ele ficava arrasado, coitado, tinha um apreço por todos naquele lugar. Tanto que saiu de casa, não aguentou a pressão. Muita mulher condenando-o num lugar só.

Porém, toda rosa tem seu espinho. E o espinho do Edifício P. Lanca de Souza - era assim que o prédio se chamava - era a dona. Uma velha gorda e nervosa, rica e avarenta, que cheirava a óleo de rícino. Ia subindo o preço do aluguel aos poucos, sempre alegando aumento dos custos, dos impostos. O pessoal se unia nas ofensas contra a senhoria, deram até apelido (que não é divulgado devido ao restrito sigilo dessa informação que circulava no recinto como confidencial). Mas tal união não pagava as contas. E ela fazia de tudo: quis pintar todas as portas, mas as pessoas não viam porquê. Estava bem assim. Temos que pagar a escola dos nossos filhos, a cor da porta não importa. Mas ela não ligava, ia lá e mandava pintar e depois enviava o valor da conta para todos. Era demais.

Cansados de tanta maluquice, foram saindo, família por família, daquele prédio, cada um procurando algum lugar novo para morar. E foi assim: cada um para o seu canto, sem mais irmandade, sem mais vizinhança. Nunca devolveram os ovos e a farinha a mais que emprestaram nem se fez mais bolo para pagar o vizinho.

E a velha...bem, a velha derrubou o prédio e construiu uma grande loja de conveniências no lugar e que vendia óleo de rícino, ninguém entendia bem o porquê. Mas morreu duas vezes mais rica.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

"a vida é um jogo"

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O menino estava parado no corredor, com os olhos vidrados. Aos poucos foram juntando lágrimas. Seus joelhos tremendo, os braços fracos. Andou pelas lojas novamente para procurar melhor. Nada. Sentou no banco da galeria e ali ficou, de cabeça baixa, chorando baixinho, para ninguém perceber. Tinha medo de gente grande.

Uma garota viu o menino lá, já há um tempo, sozinho, de cabeça baixa. Viu que ele entrava nas lojas e voltava para o banco, várias vezes. Decidiu ir conversar com o garoto.

- Oi. O que aconteceu? Eu vi que você entrou nas lojas procurando alguma coisa...

O menino levantou os olhos vermelhos de choro.

- Perdi minha mãe.

A garota ficou com olhos de pena.

- Ah...mas você vai achar sua mãe, você vai ver.

Ele pensou que nunca mais veria sua mãe.

- Ela vai voltar aqui para te procurar, fica calmo.

Ele pensou em como voltaria para casa.

- Posso fazer companhia para você até sua mãe chegar?

Ele acenou que sim. E pensou quão longe sua mãe deveria estar.

- Não precisa ficar assim, vai ver como vai ficar tudo bem.

Ele pensou quanto tempo teria que esperar.

- Então...qual seu nome?

Ele pensou na sua mãe chamando seu nome.

- Rafael.

- Ah, que legal. Quantos anos você tem, Rafael?

Ele pensou no seu bolo de aniversário com a vela 8.

- Oito anos.

- Oito anos...já é um rapazinho hein? E o que gosta de fazer?

Ele pensou nos seus amigos jogando videogame. E deu um sorriso. O Neto jogava muito mal, nunca conseguia passar aquela fase.

- Eu gosto de jogar videogame com meus amigos.

- E você joga bem?

Ele se lembrou quando venceu a última fase do jogo, seus amigos nunca conseguiram.

- Eu jogo. Consegui vencer a última fase, sabia? Era difícil.

- Uau. Então pensa que você está num videogame. Sua mãe é o chefão. O chefão sempre encontra com o mocinho no jogo não é? Então. Sua mãe vai vir te encontrar.

Ele pensou que essa garota era legal. Depois se lembrou que tinha um maço de cartas no bolso.

- Olha o que eu tenho aqui, trouxe meu baralho. Quer jogar?

- Vamos jogar!

Ficaram no banco, jogando cartas. Uma mulher gritou:

- Alguém sabe do meu filho? Tô procurando meu filho!

O menino reconheceu a voz da mãe. Achou a mãe! Aliviado, foi correndo abraçá-la. A mãe, uma mulher grande e nervosa, bufou de raiva. Pegou o menino pelo braço, deu um tapa.

- Não separa mais de mim, Rafael! Onde já se viu! Procurei que nem doida atrás de você, menino.

Foram embora, com o menino assustado. A garota ficou perplexa. A mãe era mesmo o chefão.

à espera

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Ela gostava quando diziam. Se não diziam, nunca durava muito. Não importava o que acontecesse, ela tinha que ouvir. Sempre, para não duvidar.

Um dia conheceu um rapaz. Deu uma rosa para ela no primeiro dia. Todo romântico, não largava dela. Começaram a namorar. Ele cheio de mimos, ela cheia de esperança. A qualquer momento ele ia dizer. Tão carinhoso, esse sim ia dizer. Vai dizer.

E era como se ela esperasse sentada, olhando no relógio. Como se tirasse uma folha do calendário a cada dia, esperando o dia em que finalmente dissesse.
Ele deu flores, chocolates, jantares, viagens, mas nada dela mudar aquele olhar azedo que lançava a ele a todo instante.

Acabaram não levando o namoro adiante. Ele nunca disse.

Até que um dia andando pela rua ela esbarrou em um homem. Forte, bonito. A atração foi instantânea. Ela lhe deu o telefone, ele ligou três semanas depois, quando achou o papel no bolso sem querer. Chamou-a para jantar, não tinha nada mais interessante para fazer mesmo. Ela perguntou se não podia escolher o restaurante. Escolheu um dos mais requintados, e ainda pagou a conta. Os olhos dele faiscaram.

No décimo quinto jantar, ele ajoelhou aos seus pés e abriu uma caixinha. Era um anel de noivado. Ela logo percebeu que o anel era fajuto. Mas aceitou, porque ela queria ouvir. Aceitava tudo para ouvir.

Numa quinta-feira ele ligou para ela ir até sua casa, para ver um filminho, que tal? Na verdade ele precisava de alguém que lavasse sua louça. E ela foi, porque precisava de alguém que dissesse. Mas ele não disse, não nesse dia.

Num domingo, meio cinza, ela o viu andando de mãos dadas com uma loirinha pela rua.

Não pensou duas vezes.

- Canalha!

Ele se assustou.

- Meu bem, você por aqui! Essa aqui é...a minha irmã. Ana.

Ela partiu para cima dele com toda fúria de mulher traída, tentando esmurrar cada parte livre de seu corpo.

Ele viu que só tinha uma solução para sair sem hematomas daquela história. Agarrou-a pelos braços, olhou-a nos olhos. Aproximou-se de seu ouvido e disse: eu te amo.

Enfim alguém dissera o que ela tanto quis ouvir. Casaram-se na semana seguinte.
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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