sexta-feira, 13 de agosto de 2010

o velho e o capitalismo

O velho ficava atordoado de viver nesse século. Sempre dizia, soturno, antes das refeições, como se fosse uma prece:

- O capitalismo é desumano.

E os netos, pequenos o bastante para não entenderem o que significava capitalismo, se entreolhavam em silêncio, achando que o avô estava rezando para algum deus diferente.

Tanto rancor advinha principalmente de banco e supermercado. Odiava ir em supermercado. Ficava desolado de ver o quanto se pagava por verduras e legumes que ele poderia ter no quintal de casa. Ou então quando colocavam em oferta os piores tomates, cebolas e alhos. E todo mundo caía em cima. Sem contar as comidas enlatadas e processadas, era cada ingrediente que ele nunca ouvira falar. O que pensavam que éramos, porcos? O capitalismo é desumano.

Mas nada lhe dava mais ódio que banco. Todo mês debitavam R$ 20 de sua conta miúda de aposentado. Ele fez as contas e, no fim do ano, perdia R$ 240. Não teve coragem de descobrir quanto ele perdera em mais de 50 anos de conta. Para sua vida pacata, era muito dinheiro perdido. E para quê? De que adiantava colocar seu dinheiro em um lugar longe de roubos se cada mês lhe roubavam um pouquinho? Ganharia mais - ou não perderia - se guardasse tudo em um baú em sua casa. Seria mais fácil, não? O capitalismo é desumano.

Após muitas indagações e frustações, o velho resolveu radicalizar e pôr em prática o que andava tramando há tempos. Incorporou o espírito revolucionário de sua geração quando mais jovem e enfim mudou o que tanto o incomodava: decidiu tirar todo o seu dinheiro do banco e guardar naquele velho baú inutilizado que ficava no porão. Decidiu também tentar depender menos de supermercado e criou uma hortinha no quintal de sua casa. Chega de enlatados, doces e outros baratos afins. Queria retornar às origens.

Com isso, sentia-se bem mais leve. De agora em diante, pagaria tudo em dinheiro. Chega de cartões, chega de taxas, chega de leve 3 pague 2, chega de alimentos não naturais. Que tempos difíceis. O capitalismo é desumano, mas o velho encontrara um jeito de contorná-lo.

Certo dia, porém, ele estava com vontade de jogar pôquer na casa do compadre que morava ali do lado. Poderia aproveitar também para contar sua nova empreitada de economia que andava dando certo. Quanto mais pessoas desistissem, maior seria o espírito da revolução. E lá foi, para o pôquer e para a lábia.

No fim da noite, o velho conseguira fazer o compadre aderir ao movimento, ele também era contra todo esse sistema capitalista. Chegou em sua casa, abriu a porta e parou, estarrecido. Sua casa estava toda revirada. Correu para o baú, escondido no sótão, mas era tarde demais. Os ladrões tinham achado seu tesouro e levaram tudo, tudo. Não deixaram nem uma moeda para trás.

O velho, correndo o risco de ter sua pressão alta, foi ao único lugar onde ainda restava uma esperança. Fraco, tremendo de ódio, se dirigiu ao quintal. E o que já esperava tinha acontecido: seus pés de alface, de couve, as cenouras e as beterrabas, todos seus cuidadosos alimentos pisoteados. O velho chorou. Os ladrões haviam fugido pelo quintal. O capitalismo é monstruosamente desumano, pensou mais uma vez.

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