sábado, 24 de novembro de 2012

um belo dia, o surrealismo

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Hoje é mais um daqueles dias. Você acorda e sente que giraram a chave da sua cabeça em "realidade" para "surrealismo". Nada faz sentido. Nem a coisa mais óbvia e banal do cotidiano faz sentido. E é como se tivessem lhe arrancado seus olhos para botarem no lugar os olhos de alguma águia, que encarapitada no alto do galho de uma árvore observa qualquer coisa se mexer. E agora a águia cedeu seus olhos para você ser capaz de observar o que ela observa. Você de repente se torna mais sensível a qualquer coisa que exista e que passe por você derramando água da beirada do asfalto. Tudo lhe incomoda, porque você é capaz de ouvir cada mínimo som, e sentir cada mínimo cheiro, e a pensar cada mínima coisa. Como quantos carros correm por você, e como em cada carro há alguém, e cada alguém carrega uma vida inteira consigo. De repente são muitas pessoas. Muitas vidas. Muita energia rodando e rodando, e sua cabeça fica cheia disso tudo e dói insuportavelmente, para mostrar para você que é para parar de pensar. Mas adianta? É inconsciente. Você não está pensando em nada quando aperta o sinal para o ônibus parar e espera as portas se abrirem. Não pensa em nada, mas aí vem um cheiro de gozo que muda toda a sua percepção mental. Você começa a refletir de onde vem o cheiro, e a gripe não lhe deixa distinguir exatamente se de algum gozo mágico ou do abafado de uma chuva seca. Chega em casa com o corpo quente depois de ter andado muito e também não sabe se o calafrio vem da gripe ou do surrealismo. Nada faz sentido. Talvez só Buñuel fizesse sentido nesse exato momento. A metade da lua no céu, por que não fica inteira de uma vez? E aquela mancha escura atrapalhando a pureza do brilho dela, como somos capazes de enxergá-la? A lua está muito longe. E você mal distingue o rosto de alguém a cinco metros de distância se não usar óculos. Nada faz sentido. De repente as janelas dos prédios, com as luzes acesas e os ventiladores de teto girando, parecem que abrigam pessoas invisíveis. E essas janelas não são nada mais do que meros caixotes velhos que empacotam seres humanos, e do chão parece mesmo que não existem. É contraditório, porque há poucas horas sua cabeça não suportava pensar na imensidão de vidas que vivem no mesmo lugar. Mas como não enxergamos essa vasta teia de relações - oh, benção! - tudo parece estar impregnado de um profundo, melancólico e angustiante vazio. Alguma vez alguém escreveu a palavra vazio acompanhada de algum plácido adjetivo? Mas como esse é um daqueles dias, em que nada faz sentido, a única conclusão que se chega, ao fim do dia, é que aspirar o ar lá fora faz a mente ficar conturbada. Porque em cada partícula do ar há a partícula de alguém que morreu, e o tempo todo você respira ideias alheias, que entram em você e embaralham tudo o que você é. Quando se aspira o ar lá fora, você se torna outra pessoa...

domingo, 21 de outubro de 2012

ao meu avô, com o maior carinho do mundo

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Primeira e única foto do blog. Primeira vez que escreverei diretamente e tão sensivelmente exposta àquele que agora me olha, sorrindo, através de uma moldura pregada na parede: meu avô.
Esse pedaço de papel eu encontrei no meio de suas coisas. São uma série de números da loteria que ele apostava sempre, sem esquecer. Levo esse papel comigo, dobradinho, pra onde quer que eu vá e quando estou embaixo de uma árvore, sentada na grama, olhando para o céu e quero me lembrar dele, é só abrir o papel e contemplar.

Antes, eu chorava. A memória ainda era muito viva, o cheiro ainda muito presente, e bastava olhar para os números escritos que o coração me apertava no peito e as lágrimas corriam beirando ao escândalo. Conseguia imaginá-lo sentadinho na cadeira em frente à televisão muda, apoiado na mesa branca da cozinha, anotando com a mão um pouco trêmula os números da aposta. Observava detalhadamente: no quatro e o no cinco, a caneta perdeu o vigor; depois do oito, há um zero solitário, provavelmente se confundira; do dez ao quatorze, a mão está um pouco contida e não quer arquear os movimentos; do quinze em diante ele retoma a força nas mãos e tenta acertar a curva do cinco, o último número, sem correr o risco de virar um seis. Imaginar tudo isso me doía, porque eu conseguia vê-lo escrevendo delicadamente, sentia sua fragilidade. E sempre foi essa a impressão mais latente que eu guardei. Dava vontade de lhe dar um abraço e lhe afagar o ralo cabelo branco, tomar para mim um pouco do que ele tinha de vulnerável. Esse papel só faz guardar a sensação de um avô quebradiço: o mínimo sopro, e ele voaria com o vento. Um abraço talvez ajudasse a protegê-lo.

Antes de o vento o levar, e quando passei a vê-lo menos, eu conseguia visualizar claramente essa situação. Escrevendo um texto, remoendo a falta, tentando aliviar o peso de algum remorso da consciência, olhando o papel, e lembrando de tudo que havia de mais delicado nele. E foi o que acabou acontecendo, mesmo. O choro que veio foi um choro negativo, da ausência da presença, e pesava no espírito. Pesava no espírito meu e dele. Em mim, eu tinha que deixá-lo ir.

O papel, agora, me abre um sorriso no rosto. Os olhos riem, deliciam-se com a lembrança da visão daquele homem que fizesse chuva ou sol, usava o mesmo casaco cinza, tão aconchegante. Os números da loteria trazem tanta recordação quanto qualquer foto, mas essa é mais viva: vejo seus dedos se movendo. E quase posso tocar sua pele. A sua foto na parede, com o sorriso sereno, me acena calmamente que isso é possível.

O dia que o levei leve dentro de mim, sonhei com ele, pela primeira vez. Sinal de que já havia chegado onde deveria. Lia um jornal, de pernas cruzadas, e eu tirava a luva que vestia para sentir o calor daquela pele enrugada que minhas mãos conheciam. Ficava extasiadamente feliz, perguntava-lhe três ou quatro vezes se estava tudo bem. E sim, estava tudo bem, sorria ele.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

quando o criador encontra a criatura

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Isso merece ser escrito.

Na crônica "Por um desvio de interpretação", criei um imaginário em torno de um homem que cruzou meu caminho. Mas como todos os que têm sua presença nas linhas dos meus textos, acreditei que nunca mais o veria, que cairia na efemeridade de alguns encontros da vida.

Acontece que dia desses, voltando para casa, ele estava à minha frente, caminhando com o conhecido ruído metálico para a mesma direção que eu. Para o mesmo prédio, talvez? Tudo indicava que sim. Imediatamente me senti uma ladra, alguém que secretamente roubara uma intimidade mesmo que irreal de um indivíduo que agora não fazia ideia de um dia ter estado na mente de um desconhecido. Não tive coragem de entrar no mesmo elevador que o homem. E criar um estranhamento e um constrangimento que só eu sentiria? Havia a inegável sensação de já ser íntima, de ter adentrado num universo estritamente confidencial a meu bel prazer, renegando ao sujeito o direito de saber que virou uma crônica. Furtei qualquer coisa de único...

A saudação ficou entalada na garganta. Não consegui olhá-lo por muito tempo, muito menos encarar um boa tarde sem me sentir uma invasora, envergonhada. Portanto, tenha cuidado ao enfiar-se demais na realidade ilusória de um desconhecido: se encontrá-lo novamente, e a imersão ter sido profunda, é capaz de você se sentir um velho amigo, um terapeuta ou um deus, sem nunca ter sido absolutamente nenhum dos três...

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

um desabafo, um devaneio e um sonho

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É raro eu escrever em primeira pessoa nesse blog. Normalmente meus personagens falam por mim, ou apenas os "eles" e "elas" gerais falam por qualquer um. E se há primeira pessoa, é mais na condição de personagem e menos como condição pessoal. Então por que de repente essa vontade da minha pessoalidade tão exposta? Não sei, mas desconfio que seja por angústia de uma falta de aproximação e intimidade com as pessoas, ou até por uma banalização dos assuntos, pela frivolidade das saudações de "bom dia, tudo bem?" de manhã, que de tão frívolo e automático não está preparado para as respostas verdadeiras a essa simples pergunta. E enquanto essa reconciliação com o social não ocorre, eu me volto exclusivamente ao meu blog hoje, em primeira pessoa. A sensação que eu tenho é a de estar orando em voz alta na igreja, e os que ali estiverem sentados também a rezar teriam o infortúnio de ouvir o que era para ser pessoal e íntimo, mas já não é mais.



Como alguém pode ter a lembrança daquilo que jamais viveu?

Esses dias peguei um bebê no colo. Estava deitada, e o bebê me veio nos braços; era uma tarde opaca, a cortina estava semicerrada e eu descansava em cima de um cobertor macio, numa malemolência gostosa. Aconcheguei o bebê entre meus braços e o deitei comigo. Ali, naqueles minutos em que estive junto dele antes de sua mãe aparecer e o levar, surrealmente me transportei para uma realidade que tive certeza que foi a minha em alguma outra vida, e que será novamente no futuro. Sentindo o cheiro de inocência dele, sua fragilidade e sua entrega total, eu me imaginei já na condição de mãe, com o meu filho aninhado nos meus braços exatamente como estava ali aquele bebê. Deitaríamos, e eu estaria cantarolando alguma música na mesma moleza da tarde tranquila, em uma casa sossegada, na beira de um morro ou em uma vila que dá para o mar. Os passarinhos seriam frequentes, e eu saberia distinguir o canto do pintassilgo do de uma andorinha, para cantar ao meu filho. O compasso da respiração seria o mesmo, e eu o embalaria no carinho até nós dois dormirmos juntos, na paz e na tranquilidade que seriam os dias. Ter a liberdade para descansar na simplicidade de um despropósito. Dormidinha de rede na varanda. O bebê no meu colo aquele dia me transportou para uma casinha em Portugal, ou na Itália, onde vivi, com meu filho deitado comigo na cama em cima de uma coberta macia. E que vou viver de novo, quando eu tiver meu filho, sair da metrópole e procurar a candura de um lugar calmo, do ladinho da natureza, para poder enfiar a mão na terra e sentir o cheiro do orvalho.

Não sei explicar como é a sensação de relembrar tudo o que senti naquele dia para escrever esse texto. É como se eu tivesse acessando mesmo uma lembrança vivida - a casinha sossegada na Itália e o meu filho deitado em meus braços - sem, no entanto, jamais ter vivido. Mas todas as emoções, as cores, a textura da pele do meu filho, o som da sua respiração, o seu olhar, e até mesmo a claridade do quarto surgiram instantaneamente na memória, como uma fotografia do que foi. Talvez uma mulher só descubra que deseja ser mãe quando pega um bebê no colo, sente seu cheiro e fecha os olhos.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

o vinho e uma consideração final

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Ela deu o último gole na taça manchada de vinho. Os cabelos caíam já desgrenhados em ondas pelos ombros e elas os ajeitava enquanto se recostava na cadeira, pronta para o longo suspiro do fim da bebida. Dizia algo sobre um rapaz, uma paixão dela, que não andava dando certo. O vinho e a lembrança fizeram-lhe quente e com o rosto já vermelho e o suspiro já satisfeito, ela bradou a confissão do seu íntimo - que não conhece qualquer regra:

- E só ele chegar que minhas estrutura desmorona!

E o olhar vagou longe, longe do que é racional. Talvez devêssemos mesmo desmoronar por quem nos treme as pernas.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

um pouco de sol nos escritos

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Fernando Pessoa (ou seria um de seus heterônimos?) ousou escrever que tem em si todos os sonhos do mundo; John Lennon contou a um repórter que endoidou-se por Yoko quando, certa vez, subira a escada de uma de suas instalações e lá no topo encontrara a palavra "sim" escrita; Gandhi também disse alguma coisa, mas em silêncio, sentado em sua usual posição de Buda. Elis Regina cantou sabiamente que a esperança dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar; ao passo que Cazuza, insurgindo-se na dor de cotovelo, preferiu dizer que se esconde a verdade é para proteger você da solidão; Al Pacino, cego, dançou tango guiando-se só pelo perfume da mulher - sem nem ao menos saber que ela vestia preto; Platão propôs a perfeição máxima possível em algo inatingível metaforizado como o mundo das ideias; Tom York sussurrou a canção You And Whose Army enquanto o sono o atingia deitado na cama; Coldplay fez a menina chorar. Por fim, Camões escreveu um soneto dizendo que amor é fogo que arde sem se ver e eu acho que na verdade se vê, sim.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

o fim e o começo

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Lua alta, cheia e amarela, na altura das árvores mais distantes, só não beija o solo porque é privilégio do pôr do sol. Cabelos emaranhados e pretos, anda nua na grama fresca contando as estrelas do céu. Ouve alguém xingar ali perto, perde a conta, vai ver quem é e encontra Arthur Rimbaud deitado olhando para a lua. Reclama que dói os olhos de tão grande, e se grande de repente fossem os olhos? Aí a lua seria pequena e a dor menor ainda. Senta ao lado de Rimbaud, mas a grama faz a perna nua coçar, ninguém disse que a poesia não alivia mal algum. Rimbaud começa a conversar intimamente com o satélite em versos decassílabos, e como a perna coça insuportavelmente e teme mais ainda as formigas, ela se enche e volta a caminhar pela clareira da floresta. Está maldizendo o simbolismo dos franceses de cabelo comprido – a coceira é sinal de quê? – quando tropeça em algo caído no chão. É alguém. Fita o homem estendido no chão, pele vermelha de tão bronzeada, cabelos loiros sujos, ele resmunga “você me chutou, mas tudo bem, yeah, tem valium por aí?”, peito cortado, só pode ser Iggy Pop. O que Iggy Pop estaria fazendo deitado na floresta? “Está olhando a lua também?”, pergunta a de cabelos negros, “foda-se a lua, preciso de um pico”, ele nem abre os olhos. Ela diz que vai arranjar e some de fininho, não gostaria de vê-lo berrando Raw Power! em cima de sua nudez. Dessa vez melhor caminhar por entre as árvores. Pára na frente de uma árvore tão grande quanto todas as árvores juntas da floresta, o tronco tão grande quanto a lua. Daria pra entrar dentro dela e fazer uma festa com Rimbaud e Iggy Pop. Festa na árvore. Estava quase abrindo a porta do tronco da árvore quando sente um farfalhar de grama ao seu lado, ela se vira para ver quem chega mas a pessoa está envolta em uma aura ofuscantemente brilhante e não enxerga nada. O ser de luz coloca uma mão no ombro da mulher nua, sua aura se esvai e ela enfim consegue ver: Jesus Cristo. Assustada pela presença grandiosa, ela não diz nada, fecha os olhos e nesse instante ouve a voz de Jesus Cristo em sua mente: Continue a caminhar, pare à beira do abismo, e apague tudo o que escreveu; está pronta para iniciar sua nova fase que rascunha em seu espírito. A mulher nua absorve essas palavras, abre os olhos e só enxerga a relva verde, estendendo-se à sua frente. Põe-se a caminhar em direção à lua alta, cheia e amarela, e quase viram uma coisa só, pra quem vê de longe.

domingo, 1 de julho de 2012

pequeno coro bêbado

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"Madrugada
Sou da lira
Manhãzinha
De ninguém
Noite alta
É meu dia
E a orgia
É meu bem"



Samba pela avenida, a dois passos da ponte a noite pode se tornar infinita. Lembra Eduardo Marciano nos acessos boêmios de cantar trepando nos galhos de concreto. Abrir os braços e ocupar toda a rua, abraçar toda a cidade, amar todos os indivíduos, expressar para todas as janelas que a noite, a noite é rara. O passo cambaleante, os amigos atropelando-se pelas guias: vem aqui que isso não acaba nunca, o ser só se torna ser quando traz à superfície o inconsciente, que inconsciência?, estamos todos aqui agora. Vamos parar o tempo, olhar para os rostos encavalados nos terraços julgando com suas velhas teorias o novo sangue bêbado das ruas. Pegue mais um copo e beba, beba a Dionísio por tão perfeita embriaguez de espírito em tempos tão retidos. É o que resta, afinal, longe desses muros, a dois passos da ponte; a fumaça, o copo cheio, a lua.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Primo Basílio

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Primeiro me olha de soslaio, sente a nudez de meu pulso quando tomares minha mão nas tuas.
Finge que erras o beijo no rosto e beija o canto de meus lábios, prende-me o colar no pescoço e passa os dedos pela pele.
Abraça minha cintura e sente a respiração fraquejar.
Esfrega o teu suor no meu, faz juras de amor sussurradas ao pé do ouvido.
Não deixa as cartas com teu cheiro. Fecha a porta, Primo Basílio, para que meu amor não te pegues.







ps.: originalmente, Primo Basílio terminava com "para que meu marido não te pegues". Porém, relendo-o quatro meses depois, senti o terrível e ameaçador impulso de trocar por "amor" ao invés de "marido". Fique assim, pois, o desejo satisfeito do meu íntimo com a ambiguidade que agora deixou...

quinta-feira, 17 de maio de 2012

três minutos e meio

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- e meu marido que me deu de dia das mães uma calça branca? Não dá nem pra sentar direito que mancha, não gostei, falei ai vou trocar, minha mãe chiou e disse que eu deveria dizer que gostei, mas pra quê? Eu tô assim. Ele esses dias deixou toda a mesa do escritório desarrumada, falei Carlos Alberto arruma isso que vem visita, ele não arrumou, e a minha vergonha! Também, não me dá dinheiro. Tudo bem, eu me viro com o que eu ganho, mas preciso fazer pé e mão, ai você viu meu pé? A manicure cortou aqui, como ficou feio...Tive que comprar um sapato quando saí de lá, passei na loja e vi essa bota maravilhosa. Sabe quanto? Baratíssima. O Carlos Alberto ficou uma arara, disse como você pode gastar tanto assim? Ué, essa bolsa aqui eu paguei dez reais, como é gastar tanto? Agora, com cabelo eu tenho luxo! Ai, tô com uma fome, corri o dia inteiro hoje, só parei agora, menina. Vamos comer? Ali do lado fazem um café que dá vontade até de rezar, aí você pede um croissant e ó, dieta vai por água abaixo. Ontem engordei 1 quilo! Mas ué, eu como maçã e bebo água o dia inteiro! Daí é comer uma sopa que parece que a gente tá estufada. Você viu a vizinha, como tá gorda? Remédio. Fica aí tomando remédio pra emagrecer, é um veneno, não pode fazer isso. Shake tudo bem, eu tomo aquele da Luciana Gimenez, é natural, gostoso e resolve. Ai, a Luciana tá tão bonita né? Um dia vi um vestido que ela usou, tudo de bom! Era verde-água assim, com uns brilhos, maravilhoso. O Carlos Alberto falou nossa que mau gosto, eu nem respondi, às vezes me pergunto por quê é que a gente está junto. Mas sabe... quando namorávamos era tão bom, o noivado também foi bom, depois do terceiro ano de casamento a coisa parece que esfriou, caiu na rotina. Acho que tô precisando de uma viagem. Campos do Jordão? Mas nem morta, muito frio! Não suporto pé congelado. Quero é praia, pegar uma corzinha, que essa cor de dona de casa não dá. Aí ó, falando nele, o Carlos Alberto me ligando, vou ali atender e já volto, aposto que ele quer pedir que eu busque ele no trabalho. Ai ai...Alô?

segunda-feira, 14 de maio de 2012

poesia imprestável

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O sol nasce e inunda de uma luz brilhante a janela de seu quarto,
seus olhos se queimam assim que você os abre,
pois a perfeição é bela demais para ser vista...

sofre? não é perfeição, é cinismo,
você estava perdendo as esperanças na noite passada,
se revirou nos lençóis até pegar no sono,
horas antes do sol nascer.
ele nasce, e queima seus olhos.
e não há nada de reconfortante na risada celestial
da sua cara bestial
de quem acreditava no poeta que dizia que sol é alegria, alegria, gloriosa

que alegria?
é uma claridade, ofuscante
só pra te lembrar do que você não consegue esquecer.

domingo, 6 de maio de 2012

para um desconhecido

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É inquieta a sensação de ter te perdido de vez na infinitude de possibilidades nessa metrópole. Você, um completo desconhecido: nem cheguei a te conhecer. De você, ficou apenas a lembrança dos cabelos loiros e da pele branquíssima... Estava a centímetros de mim, por que não nos conhecemos? Vai que eu descubro que ouve Led Zeppelin, detesta macarrão e nunca corre quando toma chuva? Ou então que é surfista frustrado, amante de cinema e prefere Engels a Marx? Nunca irei saber. Muito menos seu cheiro, o som da voz, se canta nas letras ou se fala baixo, a cor dos seus olhos vistos bem de perto... Qual seu signo? Parece Áries, pelos ombros pesados e andar sonhador. Está vendo o que perdemos pela simples comunhão não aceita do silêncio? Poderíamos estar tomando um café.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

o gosto desmedido

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A hora que o trem passar, eu vou estar ali a milímetros do abismo da plataforma só pra sentir o frio de ansiedade e o vento nos cabelos e o corpo ameaçar ir para trás mas a força excitante do medo paralisá-lo na mesma posição cambaleante. E quando o trem abrir as portas, antes de entrar vou olhar o vão no chão e sentir aquela ansiedade novamente de quase cair no abismo e talvez até ameace um passo em falso pra fazer valer a pena entrar na locomotiva e sair da segurança estática da plataforma, sempre apática, sempre estática... E a loucura que corre pelos trilhos também corre no meu sangue e eu compartilho com você pelos poros cada vez que você me toca no exato instante em que morremos para renascermos logo em seguida, aliviados. A vida é um trem, um trem azul.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

sobre um sonho:

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Era o caos, a verdadeira desordem da existência. O asfalto rachava-se ao meio e era possível ver o magma da cor do inferno. As milhares de pessoas não seguiam mais as leis inconscientes, agora vagavam sem rumo e avançavam por lugares antes proibidos. O céu - não sei como era o céu - porque todos olhavam o chão, sempre tão resguardado e de repente tão exposto, aberto como uma ferida. Como eram as entranhas da Terra? Os que não tinham nada a perder tentavam ganhar: inúmeras barracas espalhadas ao longo das calçadas já quebradas, entupidas de pequenos produtos sem utilidade, ofertavam apenas no silêncio. Já não era preciso gritar, já não era preciso falar, era um desespero mudo. Como quando o medo cala a voz. E alguns tentavam levar aquele dia apocalíptico como se fosse apenas mais um dia comum. Era meu pai, que andava ao meu lado despreocupado e em paz, sem o anseio irracional do fim. Carregava três filmes clássicos em uma mão, "para vermos mais tarde", e com a outra me guiava por entre a multidão que não tinha nada de turista. Eu voltava os meus olhos desesperados e ele me devolvia os seus azuis calmos, por detrás dos óculos. E quando eu via o inferno debaixo da terra, eu apertava sua mão com força, e ele não me dizia nada porque não precisava ser dito...

terça-feira, 10 de abril de 2012

desesperança

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Disseram-lhe desde muito criança que trevo de quatro folhas dava sorte. Passou muito tempo procurando no meio do asfalto, no meio da grama, na moita e no chão. No dia que achou, fez do trevo de quatro folhas três, duas, uma, nenhuma folha e só uma minúscula haste, que jogou no chão e continuou a vida.

sábado, 24 de março de 2012

bença, pai

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- antes de sair, pede bença pro pai. Que é pra não acontecer de algo ruim te pegar no meio do caminho, e espera ele responder pra estar abençoada. Pede bença pra mãe também, que ela protege você. Se nem pai nem mãe estiverem presentes, terem saído pra comprar pão e café, e no lugar se encontrar apenas o avô, pede bença pro avô também, que avô abençoa, é sangue do mesmo sangue, é família. Mas enche a boca de fé e carinho, porque pedir bença é sagrado, é fazer de pai e mãe pequenos deuses. O pai porque protege a mãe e o filho, e a mãe porque cede seu corpo para a criação. E se você é filho, tem que pedir bença pro pai e bença pra mãe, encostando a sua pele na pele deles que é pra benção completar a proteção que foi selada no destino divino do sangue do mesmo sangue. É família.

sábado, 17 de março de 2012

foi cinematográfico

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À meia-luz não foi possível vislumbrá-la de todo, mas o andar vagaroso, a maneira delicada com que subiu as escadas sutilmente iluminadas do cinema e a pequena bolsa a tiracolo completaram a absoluta solidão daquela senhora. De certa forma, se estivesse acompanhada de alguma velha amiga e ambas subissem delicadas as escadas, seria um compasso em conjunto e a tristeza do isolamento já não teria mais evidência. Poderia se supor, logicamente, que a decisão de ir ao cinema e a compra dos ingressos não caberia apenas a uma pessoa, mas às duas amigas, que conversariam sérias na fila do guichê. Entretanto, eliminando-se a segunda pessoa da imaginária situação, o que sobrou à senhora é - e da qual não é possível fugir - a solidão, esta real, curiosamente chamativa quando ela subiu devagar as escadas daquele cinema. E quando as luzes acenderam, decretando o final do filme, foi a sua silhueta que partiu após os créditos, deixando atrás de si seu rastro de aura.




"O conceito benjaminiano de aura designa o fascínio concentrado e melancólico que determinada coisa assume no instante do seu desaparecimento".

quarta-feira, 14 de março de 2012

de dentro da alma

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De tudo, resta a pergunta, que já foi a de Calvino: como poderemos esperar salvar-nos naquilo que há de mais frágil?

segunda-feira, 12 de março de 2012

o que acontece com os devaneios

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Apontou para a grande árvore à sua frente, recortada contra o fundo azul-escuro do céu, e disse para ninguém:

- Olha, a árvore da vida.

Achou a frase bonita, depois sentiu vontade de explicar, para a criança que passava segurando uma bola vermelha:

- Cada galho é como se fosse um ser vivo, e mais outro, e mais outro; tudo em torno de algo maior e imponente, que é o tronco.

A criança piscou, ofereceu a bola para brincar, ao passo que foi negada. Foi embora, passou o gato, sentiu vontade de também explicar-se para o gato:

- O engraçado é que você, religioso, pode dizer que o tronco é Deus; e você, cientista, pode dizer que é o gene.

O gato fugiu miando alto. No fim, ainda só, concluiu para si:

- Eu acho que é uma árvore, velha senhora, que tem todo o direito de permanecer imóvel, solene, assistindo às metáforas que dão para si. Hoje, árvore da vida, amanhã o que será?

As formigas aplaudiram o discurso do lobo solitário.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

à noite, os gatos são pardos

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Encontrado em meio a cartas de banqueiros, havia um bilhete de seu amigo contando mais uma de suas sádicas aventuras com mulheres bem pagas. Esse bilhete, em especial, merecia uma moldura para ser posto na parede; o retrato autêntico de um homem à beira de seu desespero. Em apenas poucas linhas, ele dizia:

"Insisti-lhe para que tirasse logo a roupa, chegando a comprimir sua garganta com as mãos. Qual não foi minha surpresa quando, tirado tudo, aquela distinta mulher revelou-se um composto oblíquo de elementos flácidos!"

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

vira, Edmundo

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Edmundo animal, bêbado como um cachorro no banco da Rua Direita. Ele e o outro, pondo-se a brincadeiras de músicas, cada qual olhando para cima sem lembrar-se de nenhuma. “Como é aquela mesmo? Ta na na nan” e com o corpo deu um floreio, tentando fazer o ritmo da bateria. O outro negou, o floreio não era daquele jeito, talvez menos curvo, assim. Os dois rodando no ar, unicamente para trazerem à memória a primeira palavra que evocasse a bendita música, os dois enérgicos, adeptos da filosofia de que o movimento aviva as recordações; foram tachados de loucos pela senhora que passou no outro lado da calçada carregando as compras do mercado.

Eram loucos? Outro dia Edmundo subiu ao ônibus de barba feita, cabelo lavado e calça nova. Não perguntei se era uma ocasião solene, visto que trazia as duas mãos postas calmamente no colo em caráter sério. Última vez fora visto bêbado como um cachorro no banco da Rua Direita, com o outro. Mas deram-lhe um sossego, afinal, era Carnaval.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

seis e meia

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Nesses dias em que a tarde parece que posa com volúpia, só pedindo para ser fotografada, insinuando-se mais e mais a cada minuto que passa. E não há uma câmera, há apenas palavras. Mas não parece ser suficiente, e então a tarde se fecha num breu, ressentida.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

com infindável descarinho:

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Quando ele encostava sua pele na minha, eu sentia Vivaldi. Amávamos como uma orquestra, os clarinetes terminando tudo em um sussurro uníssono. Mas depois de um tempo passei a sentir a Nona de Beethoven e então tudo acabou.
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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