sábado, 24 de novembro de 2012

um belo dia, o surrealismo

Hoje é mais um daqueles dias. Você acorda e sente que giraram a chave da sua cabeça em "realidade" para "surrealismo". Nada faz sentido. Nem a coisa mais óbvia e banal do cotidiano faz sentido. E é como se tivessem lhe arrancado seus olhos para botarem no lugar os olhos de alguma águia, que encarapitada no alto do galho de uma árvore observa qualquer coisa se mexer. E agora a águia cedeu seus olhos para você ser capaz de observar o que ela observa. Você de repente se torna mais sensível a qualquer coisa que exista e que passe por você derramando água da beirada do asfalto. Tudo lhe incomoda, porque você é capaz de ouvir cada mínimo som, e sentir cada mínimo cheiro, e a pensar cada mínima coisa. Como quantos carros correm por você, e como em cada carro há alguém, e cada alguém carrega uma vida inteira consigo. De repente são muitas pessoas. Muitas vidas. Muita energia rodando e rodando, e sua cabeça fica cheia disso tudo e dói insuportavelmente, para mostrar para você que é para parar de pensar. Mas adianta? É inconsciente. Você não está pensando em nada quando aperta o sinal para o ônibus parar e espera as portas se abrirem. Não pensa em nada, mas aí vem um cheiro de gozo que muda toda a sua percepção mental. Você começa a refletir de onde vem o cheiro, e a gripe não lhe deixa distinguir exatamente se de algum gozo mágico ou do abafado de uma chuva seca. Chega em casa com o corpo quente depois de ter andado muito e também não sabe se o calafrio vem da gripe ou do surrealismo. Nada faz sentido. Talvez só Buñuel fizesse sentido nesse exato momento. A metade da lua no céu, por que não fica inteira de uma vez? E aquela mancha escura atrapalhando a pureza do brilho dela, como somos capazes de enxergá-la? A lua está muito longe. E você mal distingue o rosto de alguém a cinco metros de distância se não usar óculos. Nada faz sentido. De repente as janelas dos prédios, com as luzes acesas e os ventiladores de teto girando, parecem que abrigam pessoas invisíveis. E essas janelas não são nada mais do que meros caixotes velhos que empacotam seres humanos, e do chão parece mesmo que não existem. É contraditório, porque há poucas horas sua cabeça não suportava pensar na imensidão de vidas que vivem no mesmo lugar. Mas como não enxergamos essa vasta teia de relações - oh, benção! - tudo parece estar impregnado de um profundo, melancólico e angustiante vazio. Alguma vez alguém escreveu a palavra vazio acompanhada de algum plácido adjetivo? Mas como esse é um daqueles dias, em que nada faz sentido, a única conclusão que se chega, ao fim do dia, é que aspirar o ar lá fora faz a mente ficar conturbada. Porque em cada partícula do ar há a partícula de alguém que morreu, e o tempo todo você respira ideias alheias, que entram em você e embaralham tudo o que você é. Quando se aspira o ar lá fora, você se torna outra pessoa...

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