quinta-feira, 21 de agosto de 2014

a grande garantia para o homem foi ter descoberto o amanhã

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Olha para o relógio pelo menos três vezes. Dá o último retoque no documento digitado e enfim desliga o computador, levanta-se da cadeira e fecha a sala. São seis horas, seis horas, seis horas, tem que sair agora porque demora duas horas e meia para chegar à sua casa, muito tarde, muito muito tarde. Está morrendo de fome. Sai ao portão, anda pela rua, faz frio, o vento bate no nariz sem dó, ele lembra que na carteira tem apenas dois reais em dinheiro, com isso não dá para comer nada. Como é que faz para aguentar a longa viagem em pé, esmagado entre dois sovacos e infindáveis pernas, com a cabeça esgotada e o corpo derretendo em cansaço? Fica na segunda fila para o ônibus, a primeira não consegue sequer ver onde termina. Cabe tudo aquilo de gente? Pega os dois reais e compra um salgadinho de cem gramas, sabor queijo, só para enganar o estômago. O salgadinho suja os dedos e deixa os dentes grudando uns nos outros, vai ter sede e não tem nada para beber. Ao seu lado um homem vende churrasquinho e ele fica pensando se é isso que o homem faz o dia todo, preparar a carne e à noite vender no ponto de ônibus. E o dia todo ele só preenche planilhas com dados e valores, vez em quando parando para tomar um gole de café, e fica com aquele gosto amargo e ruim na garganta o resto do dia. A fila aumenta e o ônibus não chega. O salgadinho está pela metade e lembra que não comeu nada melhor naquela quarta-feira fria. Amanhã ele pensaria em comer direito. Amanhã, aliás, ele pensaria que poderia fazer diversas coisas diferentes: tirar dinheiro no banco, organizar sua rotina, aproveitar o tempo que resta no fim do dia, organizar sua mesa de trabalho, lembrar de limpar a caixa de entrada de e-mails e mais uma porção de outras atividades. Enquanto espera a viagem no ônibus ele pensa em tudo aquilo que quer fazer, e se empolga com as idéias porque prefere pensar que sempre amanhã será um dia diferente, sempre amanhã, assim o tempo que escorre hoje sempre escorrerá somente hoje, hoje apenas, porque ele demora duas horas, duas horas, duas horas para chegar em casa. E tem que acordar cedo, acordar às seis horas, para sair no horário e chegar na hora certa e acompanhar o ponteiro do relógio que avança, avança, avança...

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

(nem) o céu é o limite

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Passou em frente a uma Igreja, dessas que se parecem com um grande galpão reformado, o culto já havia começado e a porta de vidro estava entreaberta. Sentiu vontade de entrar, ora, estamos sempre tendo que fazer planos e organizar a agenda e os horários para, na hora determinada, nos arrumarmos para a missa. Não seria libertador entrar na Igreja a hora que se quer, simplesmente por estar passando em frente naquele momento, sem se preocupar com o início e com os horários?
Entrou. O homem na porta perguntou-lhe:

- Você escreveu seu nome na ata?

- Não.

- Você tem a pulseirinha?

- Não.

- Você já veio nas reuniões anteriores?

- Não.

- Então não pode entrar.

Ficou pasmo. Mas era um local público com a porta aberta para a rua, como não podia entrar?

- Você não pode entrar.

Foi embora desolado. Passou ao lado de um supermercado e o barulho dos alimentos passando no leitor de barras foi tentador. Quis entrar e logo se deparou com uma catraca. O homem da catraca perguntou-lhe:

- Você está de mochila?

- Sim.

- Tem uma moeda dourada de 1 real fabricada ano passado para guardar sua mochila em nossos armários?

- Não.

- Você não pode entrar de mochila.

- Não tenho onde por.

- Você não pode entrar de mochila.

- Vou guardar minhas compras nela!

- Você não pode.

Desesperado, sem tem para onde fugir, quis falar com alguma alma amiga e compreensiva. Ligou para o seu amigo. A secretária de sua repartição no trabalho atendeu.

- Preciso falar com o Carlinhos.

- Você já ouviu a mensagem eletrônica?

- Mas ele trabalha ao seu lado na mesa!

- Você já ouviu a mensagem?

- Não.

- Você respondeu às nossas perguntas sobre a qualidade de atendimento de nossa empresa e deu a sua pontuação?

- Não.

- Apertou a tecla três?

- Não.

- Você não poderá falar com ele.

Então não deu outra: ficou louco. Eram tantas restrições, regras, proibições e limites imaginários e inventados, que resolveu partir dessa para melhor. Ao menos o céu era infinito. Na privacidade de sua casa, organizou o recinto, posicionou uma cadeira no centro da sala e pegou um cinto para amarrar no pilar do teto. Ouviu sirenes lá fora. Alguém arrombou sua porta. Era um policial.

- Você está tentando se matar?

- Sim.

- Você não pode fazer isso.

- Estou nos limites da minha privacidade, em um local que pago mensalmente para usar, e a vida, acima de tudo, é minha.

- Temos ordens para não deixá-lo se matar.

- Você tem um mandado de busca para ter arrombado minha porta?

- Não.

- Você tem uma cópia registrada em cartório da denúncia de meu suicídio?

- Não.

- Você registrou o protocolo da ligação recebida?

- Não.

- Então você não pode me impedir.

 

Chegando ao céu, foi parado na porta por um homem, que disse:

- Bem-vindo! Você completou todas as orações e os mandamentos descritos nas mil e seiscentas páginas da Bíblia?

- Não, mas...

- Oh, sinto muito!

E foi assim que nosso personagem descobriu que nem o céu é o limite.

sábado, 5 de abril de 2014

o amante

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Foi num desses dias quaisquer que Maria acordou de um sonho que a perturbou. Havia sonhado com um homem, charmoso, alto, vestido de esporte fino, de cabelo e barba ralos, e um sorriso encantador. No sonho, ele era seu parceiro, do tipo romântico e educado, atraente e excitante. Maria sentia cócegas na barriga só de olhar para ele, estava extasiada! Vivia a melhor de suas fantasias quando o sonoro barulho do telefone a interrompeu. Era seu marido.
- Que é, Carlos Alberto?
- Querida, estou no mercado, precisa de alguma coisa pra cozinha?
- Não, não precisa.
Nunca chamava o Carlos Alberto pelo nome inteiro,  era sempre “bem”. Estava irritada por ter sido interrompida de seu sonho com aquele homem espetacular, que estava prestes a enlaçá-la e dar-lhe um beijo! “Meu Deus, espero que isso não vá longe demais...”.
Dois dias depois, Maria sonhou novamente com o homem. Estavam na praia, molhados da água, ela deitada na areia e ele ao seu lado, estirado na toalha, de sunga, o corpo bem torneado brilhando ao sol. Acordou assustada e ofegante com tamanha visão divina.
De manhã, Maria tomou o café silenciosa. Observava Carlos Alberto e suas entradas no cabelo, ficaria calvo dentro de alguns anos. A barriga esticava a camisa social e vez por outra escapava no espaço que se abria entre os botões. Afora alguns pelos do peito que saltavam para fora da camisa. Maria suspirou fundo, e Carlos Alberto não fez nenhum comentário.
Chegava à noite e Maria ansiava a hora de dormir. Logo depois da janta, esboçava um bocejo e falava que era muito sono, cansaço e coisa e tal, ia dormir. Adormecia num instante e sonhava com o dito cujo. O homem misterioso ainda não lhe tinha dito o nome, mas continuavam a viver uma vida conjugal. Dessa vez, passeavam por um parque, de mãos dadas. Pararam em frente a uma fonte, o vento trazia um pouco da água para refrescar, ele a abraçou e a beijou. Maria não se continha de alegria, beijou com fervor aqueles lábios macios e estavam assim agarrados, quando Carlos Alberto, coitado, na profunda ignorância de seu sono, roncou alto. De um pulo, Maria abriu os olhos.
- Carlos Alberto! – gritou.
Carlos Alberto acordou também de um pulo.
- Você está roncando! – rosnou.
- Perdão – atordoado, não sabia o que fazer.
- Não consigo dormir. Preciso acordar cedo! Vai dormir no sofá! Sem reclamar!
O sono era tal que Carlos Alberto foi, ele e a culpa, dormir no sofá. Maria adormeceu novamente, mas aquela noite o homem não voltou a aparecer.
Carlos Alberto passou a dormir no sofá, já que Maria quase não conversava com ele, somente o necessário. Achou que o culpava pelo ronco daquela noite, e Maria não podia era olhar para ele sem pensar no homem de seu sonho. Não reconhecia mais o marido.
Uma noite, o sonho que tanto desejava enfim aconteceu.  Maria sonhou que vestia uma fina camisola de seda e andava de pés descalços ao longo de um quarto enorme. O homem misterioso aparecia, vestindo apenas uma calça, e eles passavam uma noite mágica de amor. Maria viveu o sonho até o fim, quando acordou naturalmente. O coração batia acelerado. Estava assustada. Olhou para seu quarto e não sabia onde estava. Carlos Alberto entrou no quarto nesse exato instante e, percebendo a expressão atônita da mulher, entregou os pontos:
- Qual o nome dele?
- De quem?
- Do seu amante.
Maria piscou os olhos, silenciosa. Algumas lágrimas rolaram pelo rosto enquanto bradava sem fôlego:
- Eu ainda não sei!

E então o casamento acabou. Não dava mais para continuar. O amante continuava a visitar-lhe nos sonhos...
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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