quinta-feira, 18 de abril de 2013

o melhor prefácio: Admirável Mundo Novo, 1932

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Um tanto longo, mas destaquei a primeira parte do melhor prefácio que já li: a honestidade de Huxley em repensar determinadas estratégias e, principalmente, suas palavras sobre a sanidade.



O remorso crônico, e nisso estão de acordo todos os moralistas, é sentimento muito indesejável. Se você se comportou mal, arrependa-se, faça as correções que puder e dedique-se à tarefa de portar-se melhor da próxima vez. De modo nenhum acalente sua má ação. Rolar na sujeira não é o melhor meio de se limpar.

A arte também tem a sua moralidade, e muitas das regras dessa moralidade são as mesmas da ética comum, ou ao menos análogas a elas. Por exemplo: o remorso é tão indesejável em relação à nossa má arte quanto em relação ao nosso mau comportamento. A maldade deve ser encontrada, reconhecida e, se possível, evitada no futuro. Meditar sobre as falhas literárias de há dez anos, procurar remendar uma obra deficiente até chegar à perfeição que não possuía na primeira apresentação, despender a idade madura tentando consertar os pecados artísticos cometidos e legados por essa pessoa diferente que se foi na juventude - decerto tudo isso é vão e fútil. Eis por que este Admirável Mundo Novo é o mesmo do antigo. Seus defeitos como obra de arte são consideráveis; todavia, para corrigi-los seria preciso reescrever o livro - e no processo de reescrevê-lo, como pessoa mais velha, provavelmente se retirariam não só algumas das falhas da estória, mas também alguns de seus méritos originais. Assim, resistindo à tentação de me espojar no remorso artístico, prefiro deixar de mão o bem e o mal e pensar em outra coisa.

Antes disso, entretanto, parece conveniente citar ao menos o defeito mais sério da estória, que é o seguinte: oferecem-se apenas duas alternativas ao Selvagem: uma vida insana na Utopia, ou a vida de primitivo numa aldeia de índios, mais humana em certos aspectos, mas em outros, pouco menos excêntrica e anormal. Na ocasião em que o livro foi escrito, essa ideia de que se dá ao ser humano a liberdade de escolha entre a insanidade de um lado e a demência do outro, era uma das que mais me divertiam e eu a considerava com possibilidades de ser verdadeira. Entretanto, por amor ao efeito dramático, permite-se muitas vezes ao Selvagem falar como ser mais racional do que de fato permitiria sua educação entre os praticantes de uma religião que é meio culto da fertilidade e meio ferocidade Penitente. Na realidade, nem mesmo o conhecimento de Shakespeare justificaria tais elocuções. E, naturalmente, ele por fim é levado a desistir da sanidade; seu Penitentismo nativo reafirma sua autoridade e ele termina numa autotortura maníaca e num desespero suicida. "E então assim morreram miseravelmente" - em grande parte para a tranquilidade do esteta gozado e cético que era o autor da fábula.

Hoje não tenho desejo de demonstrar que a sanidade é impossível. Ao contrário, embora não deixe de conservar a mesma triste certeza do passado de que a sanidade é fenômeno raríssimo, estou convencido de que ela pode ser encontrada e gostaria de vê-la mais amiúde. (...)

Se eu tivesse de reescrever agora o livro, daria uma terceira opção ao Selvagem. Entre as alternativas de seu dilema - a utópica e a primitiva - colocaria como terceira escolha a sanidade - já de fato possível, até certo ponto, numa comunidade de exilados e refugiados do Admirável Mundo Novo, vivendo nos limites da Reserva. A economia dessa comunidade seria descentralizada e henry-georgiana, a política, cooperativa kropotkinesca. A ciência e a tecnologia seriam usadas, à semelhança do repouso semanal, como se fossem destinadas ao homem e não (como atualmente e mais ainda no se o Admirável Mundo Novo) como se o homem se devesse adaptar e submeter a elas. A Religião seria a busca consciente e inteligente do Fim Último do homem, o conhecimento unitivo do Tao ou Logos imanente, da Divindade Transcendente ou brâmane. E a filosofia de vida predominante seria uma espécie de Utilitarismo Superior, na qual o princípio da Felicidade Máxima seria secundário ao princípio do Fim Último - a primeira questão a ser feita e respondida em qualquer contingência da vida seria: "De que modo este pensamento ou ação contribuirá ou interferirá na realização do Fim Último, por mim e pelo maior número possível de outros habitantes?"

Criado entre primitivos, o Selvagem (nessa nova versão hipotética do livro) não seria transportado para a Utopia até ter tido a oportunidade de aprender de primeira mão algo sobre a natureza de uma sociedade composta de indivíduos livremente cooperativos dedicados à procura da sanidade. Assim alterado, o Admirável Mundo Novo possuiria uma perfeição artística (se é permissível usar palavra tão ampla em relação a uma obra de ficção) e filosófica, de que a forma atual evidentemente carece.


Aldous Huxley, 1946

as pequenas metáforas do cotidiano

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Pense em si mesmo como um saquinho de chá. Há muito dentro de você, que com água quente é capaz de se dissolver em deliciosos gostos e sabores para quem te escolher. Pense na água quente como o amor. Aquece a alma e deixa teu melhor agradável de saborear... Mas saquinhos de chá também estragam. Já viu um? Dentro destes há tanta secura que não há água quente capaz de disseminar sua essência. Ficam lá, sem jamais levar seus caprichos a ninguém, sufocados em si próprios. Para estes saquinhos, a gente pergunta: e a quantas pessoas você deixou de oferecer o teu mais íntimo segredo? Jamais responderão. Porque nunca se tornaram chá.
Nunca deixe o que existe dentro de você secar...

quarta-feira, 17 de abril de 2013

êta, vidinha mais ou menos!

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A casinha na beirinha do morro ficava sempre de janelas escancaradas, como grandes olhos abertos para a vida. O vento fresco da manhã circulava trazendo os sussurros de bom dia das árvores e dos passarinhos. Acontecia sempre de acordar com um samba ressoante pela casa e o bem-te-vi que saracoteava no batente da janela todo dia atrás de migalhas de pão até arriscava alguns passinhos de dança. Gostava de aparecer por ali e se o samba acabasse antes, ele não ficava triste não, sinfoniava um allegro. Passarinho desses não se prende na gaiola, deixa é solto para que possa ir cantar em outras janelas, e se voltar é por vontade própria...No fim da tarde, aparecia novamente para dizer adeus e que logo pela manhã voltaria. Se juntava aos seus e voava longe, longe, formando lindos desenhos pelo céu. As árvores sacolejavam seus últimos espasmos, as fracas folhas caíam ao chão e se espalhavam pela terra, de onde renasceriam assim que tudo tivesse seu tempo. A dama-da-noite começava a se embelezar para seu encontro com a lua e o seu perfume inundaria a tudo e a todos de puro amor. A casinha ainda não fechava suas pestanas, pois à noite recebia novos visitantes: havia as corujas, sérias e formosas, e para elas cabia ouvir lindíssimas sonatas para piano. Eram mais ressentidas que os pássaros: se a música acabava, iam embora com um pio magoado. Mas também sempre voltavam. E quando o céu estava cheio de olhos piscantes, as janelas se fechavam e tudo se preparava para dormir no melodioso silêncio da eternidade.
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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