sexta-feira, 29 de novembro de 2013

crônica de sangue

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Era um domingo de inverno na metrópole. O céu cinza, o chão cinza, as pessoas todas vestidas de cores sóbrias e cobertas de pano até a cabeça – fazia muito frio e o inverno é deveras elegante e severo. Tal era o quadro quando aquela pequena menina, particularmente normal sem qualquer característica notável, resolveu dar uma volta pela rua sem a companhia de sua mãe, apenas para ver as pessoas todas arrumadas. Saiu vestindo amarelo, como um canarinho, e correu pelas frias calçadas como se tentasse voar com o gélido vento de inverno. Sentiu cheiro de café no ar. Suas asas falharam e a menina tropeçou nos próprios pés; caiu no chão e esfolou o joelho, em frente à cafeteria. O duro concreto não lhe poupou a dor tampouco a roupa, já que a calça rasgara e o joelho estava exposto com sua carne arranhada. Sangrava. Por um soberbo acaso, da cafeteria ressoava o prelúdio para piano número quinze de Chopin e a solenidade melancólica da música calou o choro da menina e fez-lhe olhar para o machucado. Algo de mágico acontecia em seu corpo: sua pele se abria e revelava o que havia de mais íntimo em seu interior. A exposição do próprio sangue, que pingava e manchava a pele impermeável do concreto, era quase como uma violação de sua própria intimidade. Por trás de sua pele branca, a capa protetora de seu corpo, havia um organismo que pulsava sangue vermelho. Sua cor forte era ainda escondida pelas veias, de forma que não há nada no corpo que se permita ser vermelho a não ser o sangue. Ser vermelho garante que seja saudável, mas ao mesmo tempo indica seu perigo. Quando exposto, vazado, por uma brecha aberta na pele, o sangue grita que algo está errado e o vermelho é a cor da atenção. Pode existir somente dentro de nós, trabalhando e existindo às escondidas, e no caso da menina, que nunca havia visto seu próprio sangue, ele existia de maneira invisível. Quase se perguntou o que era aquilo saindo de seu joelho depois que caiu. Mas soube, no exato momento em que as gotas de sangue pingavam no chão – e a música de Chopin não poderia ser mais apropriada, pois era também conhecida como “Raindrop” (gota de chuva) – que aquilo era um evento excepcional em sua biologia particular. Não teve medo de seu sangue e nem ficou impressionada com o machucado, apenas intrigada com a aparência daquilo que vive de forma velada. E nas redondezas, o sangue vermelho da menina de amarelo se destacou no meio daquele mar de coisas cinzas.

Essa imagem ficaria ainda na sua cabeça durante muito tempo. Quando cresceu pôde ver qual era a simbologia do sangue em sua cultura, mas nunca a entendeu realmente. Aos onze anos ficou mocinha e teve sua primeira menstruação: a sensação dessa vez era diferente daquela da infância, pois a presença do sangue não era excepcional e sim regulado, fazia parte das engrenagens biológicas de qualquer mulher. Mas qual a diferença daquele sangue que sai do joelho esfolado e o sangue que sai de dentro de seu órgão? Apenas, talvez, o significado de sua manifestação. Mas onde quer que estivesse, qualquer que fosse o seu sangue, aquela cor vermelha era sempre chamativa. Descobriu que é aceitável cair, machucar o joelho e andar com sangue na perna até conseguir limpá-lo – porque o vermelho não deve existir por fora – pois sua causa era acidental, mas não é aceitável se suas roupas se manchem de sangue de “mocinha”, pois a causa não é nada acidental. Pelo contrário, esse sangue deve ser extirpado até quase se tornar invisível, deixar de existir, já que sua existência é considerada impura e digna de infelicidade. Foi o que uma dessas propagandas de absorvente lhe ensinou – e também as crianças da escola, quando apontaram o dedo para ela e riram da manifestação genuína do relógio biológico - quando colocado em confronto com a calça branca e seu símbolo de pureza. Foi aí que sentiu como o sangue, tão alheio a tudo o que lhe é imposto por aqueles do lado de fora, não é apenas fluido essencial e vital de seu próprio corpo, do qual não é preciso ter repulsa, mas algo que pertence a um universo maior de símbolos e significações, dentro de um mundo asséptico. Que pena, pensa ela. Gostava mais quando Chopin entendia os pingos de meu sangue caindo no chão.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

um dia Deus me olhou e disse:

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Cada um traz em si um mundo inteiro. Cada um é responsável por aquilo que é, por aquilo que escolhe, sente, pensa, vive. Somos responsáveis pelo deslocamento de ar à nossa volta e pela energia de nossas intenções. Somos responsáveis pela aura cinza da depressão e do pessimismo ou pela aura amarela da sabedoria e do discernimento. Não vemos o invisível, mas se víssemos, todos nós seríamos como pequenos vulcões, variando nossa aura de acordo com as emoções, criando magnânimas tempestades e maremotos, em constante mutação. Somos os abalos sísmicos, os furacões, as enxurradas que levam sonhos embora, que lavam as almas da dor, as sequoias que tombam pela velhice e pelo vazio, o vento que fere, esfria e grita por toda a noite... mas também somos as flores que desabrocham, o roçar dos passarinhos, o suave correr de um rio, o alinhamento dos planetas, a rotação de um átomo. Trazemos em nós ambas as potências: da criação e da destruição. Trazemos os germes de todos os males, mas também a totalidade de todas as virtudes. Somos a caixa de Pandora e também o seu inverso. A mão que afaga é a mesma que apedreja, basta dar-lhe a potência de tais atos. Uma semente existe enquanto semente, guardando em si tudo o que há de ser, mas basta-lhe um solo infértil para que morra estéril. É nossa a escolha do jardim que cultivamos.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

do destino de Cleópatra

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Cleópatra, vestida de linho quase transparente, não consegue dormir. Está em pé apoiada na janela, o chão frio sem tapetes, a noite fria sem acalento, a lamúria ao longe de dezenas de romanos embriagados e trôpegos na rua de pedras. Pensa em Júlio César, seu amante, seu amor, relembra quando ele estava em terras egípcias e partilhavam da paixão em território dela. Agora era ela que estava em território de Júlio César, ele é quem comandava e nenhuma de suas decisões até agora atenuara a angústia do coração de Cleópatra. Quando escolheria levar a vida ao lado daquela que diz ser sua mais completa mulher? Suas palavras feriam-na: "aguarde que tenho planos para nós", o guerreiro romano dizia, enquanto continuava a dormir no mesmo leito de sua esposa Calpúrnia. Esta era uma batalha que ele não ousava enfrentar.
Sem saber, a imagem que Cleópatra fazia, ali, parada à janela, de seu futuro junto a Júlio César, de uma nova nação comandada pelo filho herdeiro que criariam juntos, criara uma fina névoa de fumaça, que esticava-se pela noite e chegava até o coração de Júlio César, enquanto este dormia profundamente. Cleópatra ligou-os a um fino cordão de promessas, como perfume de incenso espalhando-se pelo ar, e a cada dia que perdia de sono e ganhava em suspiros e amores por Júlio César era mais nitidez e menos bruma ao seu ligamento etéreo. Uma rainha que deixou para trás seu reino e seu povo para atender a um chamado de Júlio César só pode mesmo viver por ele.
Naquela última noite, Calpúrnia teve um terrível sonho sobre o que aguardava o marido se ele fosse ao Senado. César pressentiu a mesma coisa. Como homem racional que era, não dado a mistificações e derrotas, foi ao Senado mesmo assim, deixando de lado a misteriosa e renegada intuição. Lá, entre dezenas de homens que juraram proteção e fidelidade ao Ditador romano mais divino, César encontrou sua morte pela sórdida faca de seus traidores, e seu sangue agora exposto jorrava pelas escadas. Não há nada de divino em um homem descendente de Vênus que sangra em solo político.
O fio que o ligara a Cleópatra rompeu-se, voltando a se dissolver pelo frio infinito. Não mais pulsaria entre dois corações, como um cordão umbilical sagrado que alimentasse o necessário aos dois espíritos. O elo continuaria sólido em Cleópatra, uma vez que ela estaria para sempre condenada a tê-lo somente nas lembranças, mas na outra ponta haveria o vazio, o vazio de uma vida que deixou de ser vivida. Nos céus, Júpiter estende os braços para Júlio César e na terra, Cleópatra abraça um corpo inerte.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

o melhor prefácio: Admirável Mundo Novo, 1932

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Um tanto longo, mas destaquei a primeira parte do melhor prefácio que já li: a honestidade de Huxley em repensar determinadas estratégias e, principalmente, suas palavras sobre a sanidade.



O remorso crônico, e nisso estão de acordo todos os moralistas, é sentimento muito indesejável. Se você se comportou mal, arrependa-se, faça as correções que puder e dedique-se à tarefa de portar-se melhor da próxima vez. De modo nenhum acalente sua má ação. Rolar na sujeira não é o melhor meio de se limpar.

A arte também tem a sua moralidade, e muitas das regras dessa moralidade são as mesmas da ética comum, ou ao menos análogas a elas. Por exemplo: o remorso é tão indesejável em relação à nossa má arte quanto em relação ao nosso mau comportamento. A maldade deve ser encontrada, reconhecida e, se possível, evitada no futuro. Meditar sobre as falhas literárias de há dez anos, procurar remendar uma obra deficiente até chegar à perfeição que não possuía na primeira apresentação, despender a idade madura tentando consertar os pecados artísticos cometidos e legados por essa pessoa diferente que se foi na juventude - decerto tudo isso é vão e fútil. Eis por que este Admirável Mundo Novo é o mesmo do antigo. Seus defeitos como obra de arte são consideráveis; todavia, para corrigi-los seria preciso reescrever o livro - e no processo de reescrevê-lo, como pessoa mais velha, provavelmente se retirariam não só algumas das falhas da estória, mas também alguns de seus méritos originais. Assim, resistindo à tentação de me espojar no remorso artístico, prefiro deixar de mão o bem e o mal e pensar em outra coisa.

Antes disso, entretanto, parece conveniente citar ao menos o defeito mais sério da estória, que é o seguinte: oferecem-se apenas duas alternativas ao Selvagem: uma vida insana na Utopia, ou a vida de primitivo numa aldeia de índios, mais humana em certos aspectos, mas em outros, pouco menos excêntrica e anormal. Na ocasião em que o livro foi escrito, essa ideia de que se dá ao ser humano a liberdade de escolha entre a insanidade de um lado e a demência do outro, era uma das que mais me divertiam e eu a considerava com possibilidades de ser verdadeira. Entretanto, por amor ao efeito dramático, permite-se muitas vezes ao Selvagem falar como ser mais racional do que de fato permitiria sua educação entre os praticantes de uma religião que é meio culto da fertilidade e meio ferocidade Penitente. Na realidade, nem mesmo o conhecimento de Shakespeare justificaria tais elocuções. E, naturalmente, ele por fim é levado a desistir da sanidade; seu Penitentismo nativo reafirma sua autoridade e ele termina numa autotortura maníaca e num desespero suicida. "E então assim morreram miseravelmente" - em grande parte para a tranquilidade do esteta gozado e cético que era o autor da fábula.

Hoje não tenho desejo de demonstrar que a sanidade é impossível. Ao contrário, embora não deixe de conservar a mesma triste certeza do passado de que a sanidade é fenômeno raríssimo, estou convencido de que ela pode ser encontrada e gostaria de vê-la mais amiúde. (...)

Se eu tivesse de reescrever agora o livro, daria uma terceira opção ao Selvagem. Entre as alternativas de seu dilema - a utópica e a primitiva - colocaria como terceira escolha a sanidade - já de fato possível, até certo ponto, numa comunidade de exilados e refugiados do Admirável Mundo Novo, vivendo nos limites da Reserva. A economia dessa comunidade seria descentralizada e henry-georgiana, a política, cooperativa kropotkinesca. A ciência e a tecnologia seriam usadas, à semelhança do repouso semanal, como se fossem destinadas ao homem e não (como atualmente e mais ainda no se o Admirável Mundo Novo) como se o homem se devesse adaptar e submeter a elas. A Religião seria a busca consciente e inteligente do Fim Último do homem, o conhecimento unitivo do Tao ou Logos imanente, da Divindade Transcendente ou brâmane. E a filosofia de vida predominante seria uma espécie de Utilitarismo Superior, na qual o princípio da Felicidade Máxima seria secundário ao princípio do Fim Último - a primeira questão a ser feita e respondida em qualquer contingência da vida seria: "De que modo este pensamento ou ação contribuirá ou interferirá na realização do Fim Último, por mim e pelo maior número possível de outros habitantes?"

Criado entre primitivos, o Selvagem (nessa nova versão hipotética do livro) não seria transportado para a Utopia até ter tido a oportunidade de aprender de primeira mão algo sobre a natureza de uma sociedade composta de indivíduos livremente cooperativos dedicados à procura da sanidade. Assim alterado, o Admirável Mundo Novo possuiria uma perfeição artística (se é permissível usar palavra tão ampla em relação a uma obra de ficção) e filosófica, de que a forma atual evidentemente carece.


Aldous Huxley, 1946

as pequenas metáforas do cotidiano

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Pense em si mesmo como um saquinho de chá. Há muito dentro de você, que com água quente é capaz de se dissolver em deliciosos gostos e sabores para quem te escolher. Pense na água quente como o amor. Aquece a alma e deixa teu melhor agradável de saborear... Mas saquinhos de chá também estragam. Já viu um? Dentro destes há tanta secura que não há água quente capaz de disseminar sua essência. Ficam lá, sem jamais levar seus caprichos a ninguém, sufocados em si próprios. Para estes saquinhos, a gente pergunta: e a quantas pessoas você deixou de oferecer o teu mais íntimo segredo? Jamais responderão. Porque nunca se tornaram chá.
Nunca deixe o que existe dentro de você secar...

quarta-feira, 17 de abril de 2013

êta, vidinha mais ou menos!

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A casinha na beirinha do morro ficava sempre de janelas escancaradas, como grandes olhos abertos para a vida. O vento fresco da manhã circulava trazendo os sussurros de bom dia das árvores e dos passarinhos. Acontecia sempre de acordar com um samba ressoante pela casa e o bem-te-vi que saracoteava no batente da janela todo dia atrás de migalhas de pão até arriscava alguns passinhos de dança. Gostava de aparecer por ali e se o samba acabasse antes, ele não ficava triste não, sinfoniava um allegro. Passarinho desses não se prende na gaiola, deixa é solto para que possa ir cantar em outras janelas, e se voltar é por vontade própria...No fim da tarde, aparecia novamente para dizer adeus e que logo pela manhã voltaria. Se juntava aos seus e voava longe, longe, formando lindos desenhos pelo céu. As árvores sacolejavam seus últimos espasmos, as fracas folhas caíam ao chão e se espalhavam pela terra, de onde renasceriam assim que tudo tivesse seu tempo. A dama-da-noite começava a se embelezar para seu encontro com a lua e o seu perfume inundaria a tudo e a todos de puro amor. A casinha ainda não fechava suas pestanas, pois à noite recebia novos visitantes: havia as corujas, sérias e formosas, e para elas cabia ouvir lindíssimas sonatas para piano. Eram mais ressentidas que os pássaros: se a música acabava, iam embora com um pio magoado. Mas também sempre voltavam. E quando o céu estava cheio de olhos piscantes, as janelas se fechavam e tudo se preparava para dormir no melodioso silêncio da eternidade.

quinta-feira, 14 de março de 2013

fantasia do equilíbrio

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Ele fumava bem, mas escrevia mal. A vida tem dessas compensações. Dizia as palavras e elas voavam com o vento, levadas pela fumaça do cigarro. Aprendeu, então, a baforar fumaças de poesia, soltar aneis de onomatopeias e dissipá-las em trava-línguas. Arranjou amantes apaixonadas pelo silêncio literário desse homem que só fumava suas ideias. Ele presenteou-as com flores e suas palavras eram escritas em um bilhete, pois assim não se perdiam. Com o tempo, porém, as palavras se apagavam do papel e suas amantes largaram-no por ele já não ter mais nada a dizer. Abandonado, ele não fez nada. Sorria bem, mas amava mal. A vida tem dessas compensações.

quarta-feira, 13 de março de 2013

excêntrico Chico

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Quando dá meia-noite, Chico se levanta, tropeçando em seus próprios pés, e vai até a porta da sala. Destranca e sai de sua casa ainda de pijamas, fechando a porta atrás de si. Depois, parado na soleira, bate na porta de sua casa, como se fosse um visitante. Bate uma, duas, três, quatro vezes. Chico faz isso religiosamente, todos os dias. Seria sonambulismo se ele não estivesse consciente nos momentos de sua fuga banal. Chico se vê como um visitante, uma companhia para suas noites solitárias e sente-se ingenuamente feliz com isso: visita a si mesmo. Abre a porta para si e sorri satisfeito pela recepção tão agradável de seu eu dissociado. Depois de todo esse processo, Chico volta a dormir sentindo-se menos solitário pela visita recebida durante a noite de sua própria visita. Quando acorda pela manhã, não vê ninguém. O sol não ilumina outra pessoa senão ele, é sua sombra que vê pela casa durante todo o dia e à noite, já fatigado de tantos vultos silenciosos e incomunicáveis, Chico se deita à espera da visita que vem sempre na hora dúbia. É a sua tentativa de ao menos tornar sua noite de sono seguramente tranquila.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

minha personagem interior

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Perdoem-me os que esperam aqui, agora, uma crônica sobre o cotidiano ou um conto iguais àqueles que já escrevi, com uma história em terceira pessoa e personagens ilustrativos. Hoje, não há uma história. Para não dizer que não há personagem, na verdade há uma sim: ela, que habita a minha cabeça e é dona de muitas inquietações. Fico a me perguntar quais os motivos para tanto, mas receio que ela também não sabe me dizer. Vez ou outra, pobre pequena, sofre de profundas overdoses irracionais. A sua droga vem dela mesma, e é o excesso das sensações. Ultimamente, tem sentido diariamente seus efeitos. No entanto, sabe que a culpa é dela mesma. E o que faz com essa consciência? Nada. Às vezes teimo com ela por isso, onde já se viu gastar tanta energia em coisa que não vale a pena? O problema é que valeu, um dia, e se hoje não vale mais é uma ideia difícil de ser desenraizada de seu coração. É como assistir a podridão de uma maçã e chegar o dia em que você quer comê-la, mas saber que já é tarde demais e ter de jogá-la no lixo sentindo na boca o gosto do que ela poderia ser. Como ela vive em mim, por conseqüência acabo sofrendo as conseqüências do que ela sente. Assusta-me a sua imensa capacidade de relembrar o passado e se permitir viver nele nas horas frustradas, revirando e revivendo cada mínima lembrança. Acabo sentindo fortes dores de cabeça, sem nunca entender o real motivo delas. Acho que agora sei: é essa criatura que vive em mim, que vive de minhas memórias, que me alimenta de seus desejos frustrados, que faz rolar no meu sangue somente o néctar de sucessivas decepções. Ando cansada disso tudo, o sangue já está fraco e minha cabeça declina. Não é mais uma boa moradia. Ela me falou hoje, quer ir embora. Porém, cumpre aviso prévio, sem prévio prazo, e só estou aguardando o momento triunfal em que sairá de mim para que eu possa renascer novamente.
Será uma perda significativa, no entanto. Uma parte de mim, cheia de vícios e costumes por vezes venenosos. Relembrei a história de nós duas, e fiquei pasma de perceber que data de muito tempo, desde quando eu era uma criança sonhadora e consciente. A nossa relação se tornou desgastante já precocemente, quando eu estava nos meus 12 anos e, por capricho dela, sofri uma desilusão amorosa silenciosa, impossível e digna somente dos adultos. Nunca a perdoei por ter-me talhado desde muito nova ao seu altar do amor, por ter-me feito à mercê desse sentimento, prioritariamente. Preferiria ter me preocupado com minhas bonecas.
Este texto é para exterminá-la de dentro de mim.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

o verão tragicômico de Tereza

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Eram quase seis horas da tarde de verão. Com um pulo ela encarapitou-se na grade da varanda e ameaçou pular.

- Um passo a mais e eu me jogo! – bradou para o namorado, parado na soleira da porta e totalmente surpreso com a loucura.

- Mas vai pular por quê?! O que aconteceu? – essa era boa, a namorada ameaçar pular do segundo andar e ele nem desconfiar do motivo.

- Você não me ama! – e tirou um pé de apoio.

- Pare com isso! Sobe de volta e a gente conversa! Não cometa essa loucura, você sabe que não tem sentido algum!

- Você nunca me amou! – e soltou dois dedos.

Ele estava apavorado. Dava um passo e ela pulava ou ficava parado berrando aos ventos?

- Não faça isso!

O relógio da igreja bateu seis horas. Movidas pelo final do expediente e pela curiosidade, as pessoas começaram a se aproximar. Uma a uma, iam se amontoando nas esquinas, cochichando uns com os outros o que estavam vendo. Depois foi a vez dos moleques surgirem sabe-se lá de onde e correrem para debaixo da varanda da moça. Ela, felizmente para os marmanjos, usava vestido.

- Dona Neusa, olha o que a Tereza está fazendo! Tem cabimento isso? – esbravejou o rapaz para uma das senhoras paradas na esquina da rua.

- Minha nossa Senhora, ela está ficando louca! Não faz isso, minha filha, do segundo andar no máximo você quebra as pernas e aí fica inválida, não é pior? – respondeu a velha, sacudindo sua bengala, ao que foi acompanhada por muitas outras que brandiam suas bengalas.

- Foi o que eu disse, dona Neusa, mas ela não me escuta.

Tereza, enganchada na grade da varanda, olhou-o estupefata. O que as outras pessoas tinham a ver com isso? Era para ser um show só dele.

O rapaz percebeu que a vizinha também se aproximava para observar o ocorrido e ele a chamou.

- Veja a senhora o que a Tereza está fazendo! Ameaça pular porque não a amo. Diz, senhor Benedito, não fui à sua loja comprar flores outro dia para presenteá-la?

- Corretíssimo rapaz, e não há nada mais amoroso do que presentear com flores – concordou o marido da vizinha. As pessoas que ouviam a conversa embaixo, na rua, também concordaram.

- Meu jovem, conte a ela do meu marido! Certamente com o odioso exemplo ela vai mudar de ideia!

- Saia daí, Tereza, sua mãe não vai gostar!

- Tereza, estou ligando para seu pai! O velho vai infartar!

- Pule logo, se é para duvidar de rapaz tão generoso!

- Desse jeito vamos achar que quem não ama é a senhora! – e riram-se todos.

Cansada de tanta zombaria, Tereza gritou:

- Me deixem em paz! – e olhou com olhos desconsolados para o namorado - Por que é que você tinha que fazer isso?

- Tereza, meu amor, você também decide pular da varanda às seis horas da tarde?
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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