Era
um domingo de inverno na metrópole. O céu cinza, o chão cinza, as pessoas todas
vestidas de cores sóbrias e cobertas de pano até a cabeça – fazia muito frio e
o inverno é deveras elegante e severo. Tal era o quadro quando aquela pequena
menina, particularmente normal sem qualquer característica notável, resolveu
dar uma volta pela rua sem a companhia de sua mãe, apenas para ver as pessoas
todas arrumadas. Saiu vestindo amarelo, como um canarinho, e correu pelas frias
calçadas como se tentasse voar com o gélido vento de inverno. Sentiu cheiro de
café no ar. Suas asas falharam e a menina tropeçou nos próprios pés; caiu no
chão e esfolou o joelho, em frente à cafeteria. O duro concreto não lhe poupou
a dor tampouco a roupa, já que a calça rasgara e o joelho estava exposto com
sua carne arranhada. Sangrava. Por um soberbo acaso, da cafeteria ressoava o
prelúdio para piano número quinze de Chopin e a solenidade melancólica da
música calou o choro da menina e fez-lhe olhar
para o machucado. Algo de mágico acontecia em seu corpo: sua pele se abria e
revelava o que havia de mais íntimo em seu interior. A exposição do próprio
sangue, que pingava e manchava a pele impermeável do concreto, era quase como
uma violação de sua própria intimidade. Por trás de sua pele branca, a capa
protetora de seu corpo, havia um organismo que pulsava sangue vermelho. Sua cor
forte era ainda escondida pelas veias, de forma que não há nada no corpo que se
permita ser vermelho a não ser o sangue. Ser vermelho garante que seja
saudável, mas ao mesmo tempo indica seu perigo. Quando exposto, vazado, por uma
brecha aberta na pele, o sangue grita que algo está errado e o vermelho é a cor
da atenção. Pode existir somente dentro de nós, trabalhando e existindo às
escondidas, e no caso da menina, que nunca havia visto seu próprio sangue, ele
existia de maneira invisível. Quase se perguntou o que era aquilo saindo de seu
joelho depois que caiu. Mas soube, no exato momento em que as gotas de sangue pingavam
no chão – e a música de Chopin não poderia ser mais apropriada, pois era também
conhecida como “Raindrop” (gota de chuva) – que aquilo era um evento
excepcional em sua biologia particular. Não teve medo de seu sangue e nem ficou
impressionada com o machucado, apenas intrigada com a aparência daquilo que
vive de forma velada. E nas redondezas, o sangue vermelho da menina de amarelo se
destacou no meio daquele mar de coisas cinzas.
Essa
imagem ficaria ainda na sua cabeça durante muito tempo. Quando cresceu pôde ver
qual era a simbologia do sangue em sua cultura, mas nunca a entendeu realmente.
Aos onze anos ficou mocinha e teve sua primeira menstruação: a sensação dessa
vez era diferente daquela da infância, pois a presença do sangue não era
excepcional e sim regulado, fazia parte das engrenagens biológicas de qualquer
mulher. Mas qual a diferença daquele sangue que sai do joelho esfolado e o
sangue que sai de dentro de seu órgão? Apenas, talvez, o significado de sua
manifestação. Mas onde quer que estivesse, qualquer que fosse o seu sangue,
aquela cor vermelha era sempre chamativa. Descobriu que é aceitável cair,
machucar o joelho e andar com sangue na perna até conseguir limpá-lo – porque o
vermelho não deve existir por fora – pois sua causa era acidental, mas não é
aceitável se suas roupas se manchem de sangue de “mocinha”, pois a causa não é
nada acidental. Pelo contrário, esse sangue deve ser extirpado até quase se
tornar invisível, deixar de existir, já que sua existência é considerada impura
e digna de infelicidade. Foi o que uma dessas propagandas de absorvente lhe
ensinou – e também as crianças da escola, quando apontaram o dedo para ela e
riram da manifestação genuína do relógio biológico - quando colocado em
confronto com a calça branca e seu símbolo de pureza. Foi aí que sentiu como o
sangue, tão alheio a tudo o que lhe é imposto por aqueles do lado de fora, não
é apenas fluido essencial e vital de seu próprio corpo, do qual não é preciso
ter repulsa, mas algo que pertence a um universo maior de símbolos e
significações, dentro de um mundo asséptico. Que pena, pensa ela. Gostava mais
quando Chopin entendia os pingos de meu sangue caindo no chão.
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