domingo, 26 de junho de 2011

naturalmente

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- Eu vou embora. - soltou, com aquela voz gelada de fúria contida. Não olhou diretamente nos olhos dele, ficou contando os dedos dos pés.

Num dia, era uma mulher. Falava como se as palavras fossem notas musicais, suspirando melodias. Seu olhar tinha um brilho intenso de promessas absurdas. Era mais, um pouco e sempre mais.

- Pensando melhor, vá embora você. - e abriu a porta de casa, empurrando com pressa o homem que estava parado à sua frente, perdido e sem pressa nenhuma.

No outro dia, outra mulher. A cansada, preguiçosa e pavorosa. Que perdeu de repente todo o fulgor e o calor que emanava do seu corpo. A que agora acorda o homem ao seu lado aos gritos e o tranca para fora de casa, nu, surpreso e desprevenido.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

1506

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- Papai, descobri o que os sonhos são. É porque seus olhos viram para o outro lado e você passa a enxergar dentro da sua própria cabeça. E tudo não passa de reflexos do que se passa lá...

terça-feira, 14 de junho de 2011

século XXI

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O oxigênio estava insuficiente nas suas células quando acordou com ácido lático nas fibras musculares. Dores nos músculos. Correndo, foi para o armário novo com cheiro de tinta tomar um remédio. Apnoprastil, princípio ativo diretamente absorvido pelo organismo em alguns poucos minutos. Logo a corrente sanguínea carregaria o CG-T, que inibiria suas dores e assim ela poderia ir para o trabalho sem se preocupar.

Comeu uma maçã no espaço de tempo entre trocar de roupa e abrir a porta de casa, enquanto chamava o elevador e procurava a chave do carro, tudo ao mesmo tempo. Adrenalina corria pelo sangue enquanto tentava absorver o remédio e se reorganizar para poder quebrar as pontes de hidrogênio dos ácidos ribonucléicos da maçã. Mas ela em nenhum momento pensou em tudo isso: só queria era chegar no estacionamento.

Era muito cedo ainda para seu organismo processar essa grande quantidade de informações e poder mandar seus alertas rotineiros. Dessa forma, ela ligou o rádio para ouvir uma música enquanto passava batom no trânsito congestionado. Seus ouvidos captavam a música e seu cérebro se dividia em manter a atenção no movimento do carro à frente, demarcar a linha imaginária até onde o batom deveria ser pintado e processar os pensamentos frenéticos dela à respeito do seu atraso no trabalho.

O carro à frente andou, ela não viu, o carro de trás buzinou. Seu cérebro guinou para voltar a manter a atenção nos três fatores, agora com mais alguns em jogo, já que os carros começavam a andar. Acelerador, freio, câmbio, retrovisor. Para aumentar a carga de trabalho do cérebro, as células do corpo já estavam absorvendo o remédio e seus impulsos sendo mandados para o comando central. Que, sobrecarregado de tanta
tarefa, ainda tinha que desligar alguns neurônios responsáveis pelas dores nos músculos.

Chegou ao trabalho atrasada quase meia hora. Seu chefe gritou. As ondas mecânicas do som passaram pelo labirinto e chegaram até o cérebro, onde foram processadas com um alto grau de decibéis. Era demais, era muito, não ia aguentar. Então seu organismo deu seu primeiro sinal: tanta contração muscular começou a causar uma pressão em ambos os lados da cabeça.

- Ah, merda, mais essa agora. Aposto que foi aquela merda de trânsito. Alguém tem aspirina?


E mais um remédio entrou para seu organismo.








obs.: os fatos biológicos (que provavelmente não estão em conformidade com a realidade) serviram apenas de ilustração para essa história. Óbvio.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

por um desvio de interpretação

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A perna esquerda toda lhe doía a cada momento que pisava com um ruído metálico no chão. Andava arrastando-a, puxando a calça para tentar uma mobilidade maior, talvez até ganhar uma certa velocidade. Por que essa é a grande palavra, né? Todos ao seu redor caminhavam a passos rápidos, a qualquer hora; e ele sempre atrás, lento, arrastado. Não se importava com isso conscientemente, mas sua mente sim. Sentia-se atrasado e inútil, então tentava arrastar sua perna cada vez mais forte, mesmo que doesse. E ah, doía. Doía porque não era uma perna, era uma barra de ferro. O corpo não foi feito para andar em uma barra de ferro. Mas tinha que andar, tinha que correr, porque morava em uma cidade onde ficar para trás era arcaico.

Chegava em casa desgastado. De cansaço físico e mental; físico pela correria e mental porque era um exercício pessoal sair na rua todo dia e agüentar os olhares assustados. Achava que tinha superado isso, todos acham quando vêem um homem de quase quarenta anos arrastando uma perna metálica. Mas só ele sabe que nunca vai superar. Nunca vai superar porque as pessoas vão continuar a tratá-lo fingindo que esse problema não existe, o que para ele era muito pior do que de fato considerá-lo. Ninguém perguntava se precisava de ajuda. Olá, estou arrastando minha perna em um dia de chuva e molhando metade do meu corpo, poderia me ajudar? Ninguém. O que raios as pessoas pensavam? Ele não se sentiria envergonhado por tentarem ajudar. Porque ele, visivelmente, precisava de ajuda.

E achava o papo de superação um discurso de fácil resultado na boca de homens inteiros. Ele era metade, sem uma perna e consumido pela amargura. Não via por quê isso deveria ser normal. Não via por quê tinha que encarar naturalmente. Não conseguia. Se sentia catalogado na categoria de deficiente, palavra que remetia à ineficiência. Ele era ineficiente? Só porque demorava para andar e não era compatível com a imagem perfeita vendida pelas propagandas?

É, se sentia mal. Mas mal sinto eu, por tomar as dores desse homem que encontrei no meu caminho e escrever essa pequena crônica, como se o desabafo fosse dele mesmo. Tudo isso acabou sendo a perna metálica da minha própria mente, que anseia por se exibir através de verbos em terceira pessoa, pessoas estas que muitas vezes são reais. Não sou poeta, deixo a mente trabalhar cambaleante, do jeito que consegue. É na impulsividade que tudo surge.
 

lacrônico, o espaço das crônicas. © 2010

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