terça-feira, 28 de julho de 2015

o mundo do conceito

Vamos começar essa história falando de um jeito claro: João, nosso personagem, mora em um lugar medíocre, não importa se esse lugar é macro ou micro, é bairro cidade ou país. O julgamento de ser medíocre, porque afinal é um julgamento, não é subjetivo. Está evidente que João tem, para um jovem de sua idade, uma cabeça desordenada de informações circulantes e pipocantes de tudo o que forma as regras invisíveis do lugar onde mora, porque ele não é capaz de tomar uma decisão sozinho ou uma decisão que julga tomar sozinho. Vamos ver porquê.

Depois de uma jornada exaustiva de trabalho, João recebe seu salário, mas no dia seguinte acorda se perguntando se é aquilo mesmo que ele quer, trabalhar-dinheiro-trabalhar, porque ele observa os outros à sua volta e todos parecem estar ganhando dinheiro de um jeito bem legal. João assiste televisão e lê revistas e descobre que esses outros são chamados de “empreendedores” e são a nova onda do século. Os empreendedores aparecem bem nas fotos, alinhados e sorridentes, discorrendo sobre o novo aplicativo revolucionário (aspas aqui) que inventaram para os novos celulares quase robóticos e que, santa mãe, rendeu um milhão no primeiro ano. A TV e a revista exaltam. Quando João passeia pela internet no meio do seu trabalho durante o dia, todos os seus jovens amigos querem fazer o mesmo. Estão todos comentando as infelicidades de suas miseráveis vidas, e como poderiam todos estar fazendo outra coisa. Sempre qualquer coisa que não o que fazem agora. O futuro, para eles, é algo que se alcança somente se a felicidade e o prazer baterem à porta. Eles pensam que poderiam viajar pelo mundo inteiro, carregando apenas um celular e um computador com internet, e assim tudo pode acontecer. João não sabe o que sente. Afinal, se basta apenas um celular e um computador, por que ele e todos ainda não mudaram radicalmente suas vidas?

Sem saber o que sentir, João sai no seu horário de almoço procurando um lugar para comer. Está andando entre vários restaurantes, com uma fome desgraçada, e são todos muito agradáveis. João queria uma comida, mas se deteve em frente a um balcão que oferecia algo apetitoso: uma vida saudável. O balcão parecia oferecer diversas opções de refeição, mas João entendeu outra coisa. Entendeu que ali poderia comer sem culpa, tudo era livre de gorduras e calorias; poderia comer alimentos verdadeiramente orgânicos, escolhidos com cuidado por trabalhadores de uma cooperativa do interior do Estado, que trabalham seis horas por dia, com direitos de trabalhador, representatividade de sindicato e trator próprio. Almoçando ali, João comia também a bela arte do design de letras finas e cores divertidas dos títulos, o tratamento de imagem em cima dos milhos reluzentes e as sucintas frases motivadoras escritas na parede: “comer bem faz bem”, “aqui você pode comer sem culpa” e a clássica “sorria, você está levando uma vida saudável”. João não entendeu quem levou o julgamento de bom ou ruim também para o almoço. Mais do que não saber o que comer, João não sabia mais o que deveria comer.

Sem saber o que comer, decide voltar para casa. Tem um encontro com uma velha amiga. Sua amiga circulava por muitos grupos sociais e grupos de estudantes da sua faculdade. Ela chega à sua casa vestindo roupas de academia e uma camiseta com os dizeres “eu sou fitness” em letras verde limão. E já chega dizendo que ele está fora de forma, e que ela estava exatamente como ele, mas começou um ótimo treinamento, que aliás deve continuar para completar sua meta programada para o dia, portanto deveriam ir para o parque conversar. A sua meta só termina com o levantamento de vinte quilos em cada perna na academia ao lado de sua casa. E, é claro, tudo acompanhado de uma rígida dieta de calorias, jantares de caldo verde, sucos “detox” e sol de manhã, pois essa é a receita para ser feliz, conforme diz o casal de atores abraçados e alegres no painel com a marca da academia.
Os dois caminham pelo parque e um casal de meninas passa ao lado deles, de mãos dadas. João continua andando naturalmente, mas sua amiga sorri para o casal e faz um gesto de “paz e amor”. Depois comenta para o João: temos que respeitá-las, elas são minoria. João não entende o comportamento da amiga, pois João não viu um casal de minoria, viu apenas duas meninas juntas e isso não lhe trouxe nenhuma reação adversa. Sua amiga se enfurece e diz que por pensamentos machistas como esse é que o país não anda para frente. Sai bufando e começa a correr pelo parque, deixando João para trás, que está ainda sem entender por que foi tachado de um nome que sequer se aplica ao que ele é.


Sem ter mais com quem conversar, ele se senta em um banco do parque, desolado, aproveitando os últimos minutos do seu horário de almoço. Em resumo, não sabe o que deve fazer com a sua vida, o que deve comer, como deve cuidar do corpo e como deve se comportar socialmente perante todos os grupos. Está sentado olhando para o parque. Nesse momento, uma jovem garota senta-se em um banco em frente a João, procurando algo em sua bolsa. O cachorro que a acompanha na coleira também se senta, esperando a dona, e olha fixamente para João. João o observa, o pequeno cachorro da menina está vestindo uma saia rosa com um colete amarelo, na cabeça tem diversos penduricalhos presos ao pelo, inclusive uma estrelinha de bom cão colada na testa. Veste sapatinhos que parecem apertados. O cachorro olha para João com olhar de desespero, como se pedisse para tirá-lo dali de um mundo que criou um conceito para vestir o cachorro como gente. João olha para o cão com o mesmo olhar de desespero de quem está com a cabeça cheia de minhocas. 

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