Vamos começar essa história falando de um jeito claro: João,
nosso personagem, mora em um lugar medíocre, não importa se esse lugar é macro
ou micro, é bairro cidade ou país. O julgamento de ser medíocre, porque afinal
é um julgamento, não é subjetivo. Está evidente que João tem, para um jovem de sua
idade, uma cabeça desordenada de informações circulantes e pipocantes de tudo o
que forma as regras invisíveis do lugar onde mora, porque ele não é capaz de
tomar uma decisão sozinho ou uma decisão que julga tomar sozinho. Vamos ver
porquê.
Depois de uma jornada exaustiva de trabalho, João recebe seu
salário, mas no dia seguinte acorda se perguntando se é aquilo mesmo que ele
quer, trabalhar-dinheiro-trabalhar, porque ele observa os outros à sua volta e
todos parecem estar ganhando dinheiro de um jeito bem legal. João assiste
televisão e lê revistas e descobre que esses outros são chamados de
“empreendedores” e são a nova onda do século. Os empreendedores aparecem bem
nas fotos, alinhados e sorridentes, discorrendo sobre o novo aplicativo
revolucionário (aspas aqui) que inventaram para os novos celulares quase
robóticos e que, santa mãe, rendeu um milhão no primeiro ano. A TV e a revista
exaltam. Quando João passeia pela internet no meio do seu trabalho durante o
dia, todos os seus jovens amigos querem fazer o mesmo. Estão todos comentando
as infelicidades de suas miseráveis vidas, e como poderiam todos estar fazendo
outra coisa. Sempre qualquer coisa que não o que fazem agora. O futuro, para
eles, é algo que se alcança somente se a felicidade e o prazer baterem à porta.
Eles pensam que poderiam viajar pelo mundo inteiro, carregando apenas um
celular e um computador com internet, e assim tudo pode acontecer. João não
sabe o que sente. Afinal, se basta apenas um celular e um computador, por que
ele e todos ainda não mudaram radicalmente suas vidas?
Sem saber o que sentir, João sai no seu horário de almoço
procurando um lugar para comer. Está andando entre vários restaurantes, com uma
fome desgraçada, e são todos muito agradáveis. João queria uma comida, mas se
deteve em frente a um balcão que oferecia algo apetitoso: uma vida saudável. O
balcão parecia oferecer diversas
opções de refeição, mas João entendeu outra coisa. Entendeu que ali poderia
comer sem culpa, tudo era livre de gorduras e calorias; poderia comer alimentos
verdadeiramente orgânicos, escolhidos com cuidado por trabalhadores de uma
cooperativa do interior do Estado, que trabalham seis horas por dia, com
direitos de trabalhador, representatividade de sindicato e trator próprio.
Almoçando ali, João comia também a bela arte do design de letras finas e cores
divertidas dos títulos, o tratamento de imagem em cima dos milhos reluzentes e as
sucintas frases motivadoras escritas na parede: “comer bem faz bem”, “aqui você
pode comer sem culpa” e a clássica “sorria, você está levando uma vida saudável”.
João não entendeu quem levou o julgamento de bom ou ruim também para o almoço.
Mais do que não saber o que comer, João não sabia mais o que deveria comer.
Sem saber o que comer, decide voltar para casa. Tem um
encontro com uma velha amiga. Sua amiga circulava por muitos grupos sociais e grupos
de estudantes da sua faculdade. Ela chega à sua casa vestindo roupas de
academia e uma camiseta com os dizeres “eu sou fitness” em letras verde limão.
E já chega dizendo que ele está fora de forma, e que ela estava exatamente como
ele, mas começou um ótimo treinamento, que aliás deve continuar para completar
sua meta programada para o dia, portanto deveriam ir para o parque conversar. A
sua meta só termina com o levantamento de vinte quilos em cada perna na
academia ao lado de sua casa. E, é claro, tudo acompanhado de uma rígida dieta
de calorias, jantares de caldo verde, sucos “detox” e sol de manhã, pois essa é
a receita para ser feliz, conforme diz o casal de atores abraçados e alegres no
painel com a marca da academia.
Os dois caminham pelo parque e um casal de meninas passa ao
lado deles, de mãos dadas. João continua andando naturalmente, mas sua amiga
sorri para o casal e faz um gesto de “paz e amor”. Depois comenta para o João:
temos que respeitá-las, elas são minoria. João não entende o comportamento da
amiga, pois João não viu um casal de minoria, viu apenas duas meninas juntas e
isso não lhe trouxe nenhuma reação adversa. Sua amiga se enfurece e diz que por
pensamentos machistas como esse é que o país não anda para frente. Sai bufando
e começa a correr pelo parque, deixando João para trás, que está ainda sem
entender por que foi tachado de um nome que sequer se aplica ao que ele é.
Sem ter mais com quem conversar, ele se senta em um banco do
parque, desolado, aproveitando os últimos minutos do seu horário de almoço. Em
resumo, não sabe o que deve fazer com a sua vida, o que deve comer, como deve
cuidar do corpo e como deve se comportar socialmente perante todos os grupos.
Está sentado olhando para o parque. Nesse momento, uma jovem garota senta-se em
um banco em frente a João, procurando algo em sua bolsa. O cachorro que a
acompanha na coleira também se senta, esperando a dona, e olha fixamente para
João. João o observa, o pequeno cachorro da menina está vestindo uma saia rosa
com um colete amarelo, na cabeça tem diversos penduricalhos presos ao pelo,
inclusive uma estrelinha de bom cão colada na testa. Veste sapatinhos que parecem
apertados. O cachorro olha para João com olhar de desespero, como se pedisse
para tirá-lo dali de um mundo que criou um conceito para vestir o cachorro como
gente. João olha para o cão com o mesmo olhar de desespero de quem está com a
cabeça cheia de minhocas.
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