domingo, 21 de outubro de 2012

ao meu avô, com o maior carinho do mundo



Primeira e única foto do blog. Primeira vez que escreverei diretamente e tão sensivelmente exposta àquele que agora me olha, sorrindo, através de uma moldura pregada na parede: meu avô.
Esse pedaço de papel eu encontrei no meio de suas coisas. São uma série de números da loteria que ele apostava sempre, sem esquecer. Levo esse papel comigo, dobradinho, pra onde quer que eu vá e quando estou embaixo de uma árvore, sentada na grama, olhando para o céu e quero me lembrar dele, é só abrir o papel e contemplar.

Antes, eu chorava. A memória ainda era muito viva, o cheiro ainda muito presente, e bastava olhar para os números escritos que o coração me apertava no peito e as lágrimas corriam beirando ao escândalo. Conseguia imaginá-lo sentadinho na cadeira em frente à televisão muda, apoiado na mesa branca da cozinha, anotando com a mão um pouco trêmula os números da aposta. Observava detalhadamente: no quatro e o no cinco, a caneta perdeu o vigor; depois do oito, há um zero solitário, provavelmente se confundira; do dez ao quatorze, a mão está um pouco contida e não quer arquear os movimentos; do quinze em diante ele retoma a força nas mãos e tenta acertar a curva do cinco, o último número, sem correr o risco de virar um seis. Imaginar tudo isso me doía, porque eu conseguia vê-lo escrevendo delicadamente, sentia sua fragilidade. E sempre foi essa a impressão mais latente que eu guardei. Dava vontade de lhe dar um abraço e lhe afagar o ralo cabelo branco, tomar para mim um pouco do que ele tinha de vulnerável. Esse papel só faz guardar a sensação de um avô quebradiço: o mínimo sopro, e ele voaria com o vento. Um abraço talvez ajudasse a protegê-lo.

Antes de o vento o levar, e quando passei a vê-lo menos, eu conseguia visualizar claramente essa situação. Escrevendo um texto, remoendo a falta, tentando aliviar o peso de algum remorso da consciência, olhando o papel, e lembrando de tudo que havia de mais delicado nele. E foi o que acabou acontecendo, mesmo. O choro que veio foi um choro negativo, da ausência da presença, e pesava no espírito. Pesava no espírito meu e dele. Em mim, eu tinha que deixá-lo ir.

O papel, agora, me abre um sorriso no rosto. Os olhos riem, deliciam-se com a lembrança da visão daquele homem que fizesse chuva ou sol, usava o mesmo casaco cinza, tão aconchegante. Os números da loteria trazem tanta recordação quanto qualquer foto, mas essa é mais viva: vejo seus dedos se movendo. E quase posso tocar sua pele. A sua foto na parede, com o sorriso sereno, me acena calmamente que isso é possível.

O dia que o levei leve dentro de mim, sonhei com ele, pela primeira vez. Sinal de que já havia chegado onde deveria. Lia um jornal, de pernas cruzadas, e eu tirava a luva que vestia para sentir o calor daquela pele enrugada que minhas mãos conheciam. Ficava extasiadamente feliz, perguntava-lhe três ou quatro vezes se estava tudo bem. E sim, estava tudo bem, sorria ele.

2 opiniões:

Jéssica Lopes disse...

Que texto maravilhoso!

Pioli disse...

ótimo texto tais!

 

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