Moravam os dois: Nelson, na cadeira de rodas, e seu amigo
Lorival, o ajudante. O conjugado de número 43 na esquina com a mais famosa
padaria era prático e objetivo: um sofá de dois lugares, uma televisão de tubo
em cima de uma mesa de três pernas e um toco de madeira, um pano cinza cobrindo
a claridade vinda da janela, um pequeno fogão ao lado de uma geladeira de dois
terços da altura de Lorival, de cor azul bebê descascada e uma pia de mármore
branco encardida. Comiam na sala. Lorival com o prato no colo e Nelson com uma
pequena mesinha adaptada. É que não sentia as pernas.
No fundo, um banheiro apertado com ladrilhos dos anos 80 e
um quarto com um armário e duas camas. A luz do quarto piscava porque a fiação
estava comprometida e Lorival sempre se esquecia de arrumar. Por causa disso
deixou de acender a luz do quarto, dizia que não era mais preciso, já que em
frente à janela piscava um semáforo, o que o ajudava minimamente a enxergar o
ambiente. Nelson gostava menos ainda dessa solução, pois dizia que o quarto
ficava parecendo aposento de
puta, que não é em si um grande problema, "o problema é que não há
puta!".
Nelson perdeu a sensibilidade das pernas em um acidente
literário. Lorival anda normalmente, mas é um pouco biruta, dizem. Nelson é a
mente de Lorival e Lorival é as pernas de Nelson. O mutualismo já dura mais de 30
anos, embora a origem tenha se perdido nas poeiras do tempo. O que importa
mesmo é que Nelson é escritor e Lorival jamais tira sua velha blusa furada de
três cores - creme, marrom e mostarda. Leva a cadeira de rodas a passos lentos
de quem já tem vasto cabelo branco e rugas pretéritas. O comum a ambos é uma
touca de lã, que usam nesses dias de muito frio.
Lorival gosta de cinema e Nelson tem muito sono. Saíam cedo
de casa para pegar a sessão das sete, em uma famosa Mostra de Cinema que
acontecia na cidade. Os ingressos eram de graça, e o hall de entrada do cinema
de rua lotava de iminentes jovens cineastas com muito a dizer sobre seus
próprios filmes. Lorival geralmente estaciona Nelson em um canto onde não
atrapalha ninguém; de costas para a rua, ao lado do balcão da cafeteria.
Deixa-o ali enquanto esvazia o lixo de sua sacolinha a tiracolo, que leva a
qualquer lugar, e que comumente tem o jornal do dia que Nelson adora ler.
Livra-se de alguns pequenos papeis, experimentando todos os lixos diferentes do
lugar, andando para lá e para cá com saciável curiosidade. Nelson fica. Tira do
bolso o caderninho que usa para anotar suas frases literárias e observa o que
já escreveu. Lorival vê um dos cineastas conversando com seus amigos críticos e
senta-se ao seu lado para ouvir a conversa. "Acho que meu filme tem uma
sensibilidade única, que poucos vão entender. Demoramos seis meses só para
fazer a primeira cena". Lorival guarda a frase na cabeça para dizer a
Nelson.
Lorival fica na fila do caixa, retira uma nota solta de
dentro da calça e pede um saquinho de pão de queijo. Volta para seu amigo,
cutuca seu braço e entrega os pães de queijo recém-saídos do forno. Nelson pega
e não diz nada. Lorival agacha e pergunta "quer café?", Nelson diz
que sim. Lorival volta à fila do caixa e compra um café, grande, que entrega ao
seu amigo, depois volta novamente à fila e compra outro saquinho de pão de
queijo para si. Deixa Nelson ali parado, comendo sozinho, e volta às suas
andanças. Pergunta a algumas pessoas a hora, já está próximo da sessão. Vai à
bilheteria pegar o bilhete de Nelson, entrega a ele e depois volta para pegar o
seu. Entram na sessão, Lorival senta ao lado de Nelson e diz:
- O rapaz desse filme disse que a sua sensibilidade é única
e que poucos vão entender.
Nelson bufa e não maneira a altura da voz naquela sala de
cinema silenciosa:
- Que besteira que esses jovens pensam!
Alguns viram a cabeça para olhar de onde vem aquela voz e,
sobretudo, a afirmação raivosa. Mas a penumbra não os deixa definir o rosto, e
voltam a seus mundos um pouco mais seguros do que antes.
O filme começa, Lorival tenta prestar atenção, mas Nelson
já caiu no sono e está roncando um pouco alto. A primeira cena, aquela que
demorou seis meses para ser feita, não prende a atenção de Lorival, que deixa a
sala com Nelson dormindo. Sabe-se lá por onde andou e quais outras conversas
ouviu... Pouco antes de acabar o filme, Lorival volta à sessão para levar
Nelson embora. Este, emburrado, não diz nada, mas escreve em seu caderninho.
Lá fora, vou ao ponto de ônibus e encontro Lorival e Nelson
esperando a lotação. Digo que inventei uma vida inteira aos dois, dando-lhes
nomes e endereço? Nelson se adianta e me diz com oratória de locutor:
- Deixa eu lhe dizer uma coisa, minha jovem, que pode ser
muito útil. Recentemente, os franceses descobriram que repolho branco e agrião
podem impedir o câncer de intestino, uma doença muito grave que chega a matar
uma pessoa a cada cinco. Ouviu bem? Repolho branco e agrião. Essa notícia saiu
em um jornal de pequena circulação e como é muito importante, estou lhe dizendo
para que possa repassar a outras pessoas e evitar a incidência de câncer de
intestino.
Agradeci a sua notícia e pouco depois seu ônibus chegou. Vi
os dois embarcarem ainda em tempo de ouvir Nelson dizer: "amanhã tem que
me levar para fazer a barba e o cabelo". Lorival acenou e a porta do
ônibus fechou atrás de si.
1 opiniões:
chegou a dizer a Lorival e Nelson que tinha inventado aos dois toda uma vida, com endereço e nomes?
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