quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

a morte é uma arte

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Estou com a garganta seca e a cabeça rodando. Não sei quando conseguirei ficar lúcido novamente. Eu gostaria de poder parar o tempo por alguns instantes, só para eu conseguir sair da cena de fininho, sem ninguém notar que estive lá. Tudo é mais poético na ficção.

Deveriam ensinar na escola como é matar alguém. Como é sentir o sangue quente nas mãos, a pulsação rápida de quem está tendo aquele último flashback da vida nos dois segundos antes da morte. Vida e morte existindo ali, quase simultaneamente.

E ninguém ensina também o que você deve sentir depois. Quando o último sopro se foi, quando você sente aquele frio estranho na espinha por algo que está abandonando de vez aquele corpo – a alma do sujeito, talvez, indo embora. E o vazio. É irônico. Você mata alguém, mas parece que matou você mesmo.

Cheguei em casa sem nem lembrar o caminho que fiz. Só ouvia vozes na minha cabeça, do padre me dizendo que aos oito anos de idade eu já deveria confessar, da minha mãe dizendo que os maus meninos vão para o inferno, da minha ex namorada gemendo que a vida era boa demais enquanto eu a deixava louca embaixo dos lençóis. A vida é uma merda, e matar alguém só piora tudo.

Beber, fumar, dormir, nada me faz esquecer dos olhos daquele desgraçado. Dos olhos de desespero. Ninguém que não está prestes a morrer tem um olhar assim. Acho que por isso estou desse jeito, tão vulnerável. Não esperava encontrar piedade nem sofrimento vindos dele, aquele machão. Maldito. Ainda presente mesmo morto.

E como sou dramático, é claro que ficarei lúcido novamente. Homens viram mafiosos bandidos porque sabem que matar alguém é como uma droga. A primeira vez é sempre inesquecível, você sempre vai querer de volta as sensações únicas e prazerosas. Porque o sangue quente, a carne se rasgando, o último tremor... Céus, não existiriam açougueiros no mundo se eles não se sentissem donos de si rasgando um porco ao meio.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

condição única do ser humano

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Cara consciência, sinto muito, mas não consigo dormir.

Pretendia um momento de descanso, mas você não descansa momento algum. Sempre frenética, sempre ligada. Às vezes incomoda, sabia?

Eu terminei de ler um livro hoje. Terminei, assim como se termina uma refeição. O livro era interessante, a história me prendeu, mas acabou. Não preciso que você me lembre do livro a cada momento. Não preciso me lembrar da história quando estou lavando louça ou, pior, quando gostaria de ter um orgasmo com meu namorado. E isso vale para tudo o que você resgata nas horas mais impróprias: contas a pagar, ligações a fazer, o que me esqueci de comprar no supermercado ou que roupa vestir amanhã.

Portanto, vim formalmente pedir um descanso. Uma trégua. Um tempo de silêncio. Você pode fingir que está em um mosteiro. Pode fingir que cortaram sua língua e que você não tem mais nada a fazer a não ser ficar um tempo em silêncio. Um longo tempo, por favor. Preciso parar de sentir você maquinando tudo o tempo inteiro. Parece que não existe mais nada, não existe coração nem alma nem corpo, só cérebro. Um cérebro inquieto, infeliz com tudo o que vê. Para quê isso?

Só o que quero é paz. Não quero mais responder que não estou bem por motivos que só você conhece, que só você traçou assim. Quero uma liberdade talvez inédita, mas agora necessária.

Então, de todo o meu profundo coração – que você, invariavelmente, nem escuta mais -, fique em stand by. Retornarei a falar com você algum dia.

E boas férias.

domingo, 26 de dezembro de 2010

tinha alguém no meio do caminho. No meio do caminho tinha alguém.

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Ela estava seguindo seu caminho quando ele tomou o mesmo caminho que o dela. Se encontraram de repente, iniciaram uma conversa também de repente e foi assim, de súbito, que ela percebeu que seu coração não estava batendo rápido pela longa caminhada. Estava no mesmo compasso que o dele.
Ficaram ambos assim, nessa sintonia louca, por um longo tempo. Depois de mais de 730 crepúsculos, a sintonia se perdeu, ele pegou o caminho oposto e ambos ficaram assim, sozinhos, sem sintonia nenhuma.
Se viu caminhando a esmo, com o coração descompassado. Andou e andou e procurou voltar ao seu ritmo próprio, aos poucos, até que conseguiu. Respirou fundo e seguiu adiante.
E vai caminhar assim por muito tempo, com os olhos no horizonte, enxergando cada aurora e cada poente. Pensando apenas no horizonte e nas surpresas que ele traz.

explique

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Ela viu num filme e decidiu fazer igual porque achou poético. Arranjou uma garrafa vazia e pintou-a de azul porque achou mais calmo. Escreveu tudo o que sentia por ele num bilhete e colocou dentro da garrafa porque queria algo eterno. Esperou dar lua cheia pra jogar a garrafa no mar porque era supersticiosa. O mar levou a garrafa como leva um plâncton porque suas ondas são constantes. Ela acreditou fortemente que aquilo daria certo porque é sonhadora. A garrafa chegou ao lugar errado e ali ficou porque as ondas do mar não sabiam do destino. Ele ligou pra ela alguns dias depois porque sentiu saudade. Ela ficou feliz e se sentiu em paz porque pensou que ele lera a mensagem. A garrafa nunca foi encontrada e tudo acabou se resolvendo de outro modo porque, de vez em quando, certas coincidências simplesmente acontecem.

passageiro

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Olhou o cardápio várias vezes em busca do prato mais caro ou mais sofisticado. Hoje poderia gastar o quanto quisesse, ganhou essa noite e seu estômago merecia algo melhor que hamburguer e batata frita. Era uma noite solene. Merecia comer o que nunca comeu na vida, já que só teria essa oportunidade. Afinal, não é todo dia que funcionária pública pisa em um Cantaloup. Queria que seu organismo conhecesse novos sabores. Quem sabe, talvez um terrine de foie gras de pato pudesse dar ao seu corpo bases nitrogenadas e aminoácidos incríveis. Poderia ser, em uma pequena parte do seu corpo, semelhante à uma burguesinha que almoça ali todos os dias. Escolheu um magret de pato com purê de castanhas portuguesas. O prato veio, com um mínimo de comida. Por isso que rico é magro. Não se satisfaz com menos de mil reais em um restaurante como aquele. Mas mil reais é muito, até nas melhores famílias. Porque tudo acaba no banheiro. Comeu. Tinha gosto de alecrim, não gostou. Comeu com gosto, mas ainda estava com fome. Quer saber? Me dá um arroz doce, garçom. O mais simples que tiver, com canela. Agora sim. Nunca mais voltará em restaurante elitizinho como aquele. Preferia o furor de um rodízio por 20 reais. Você come o que quiser e sabe o que está comendo. A carne é carne, não é carne com molho de erva doce e mel francês. Estava pensando nisso enquanto voltava pra casa. Estava enjoada. Cabeça revirando. Parou o carro. E vomitou 231 reais na sarjeta.
 

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