eu sinto uma falta desgraçada desse blog.
das pessoas aleatórias que vira e mexe caíam aqui e deixavam pegadas em forma de mensagens,
do costume de se ler blogs do blogspot.com,
do costume de se escrever para um blog, assim, desinteressadamente, e conhecer algumas pessoas legais por aí.
não vou me estender falando do zeitgeist, e do tempo que passa, e de como tudo está hoje, vou só dizer:
que o lacrônico está de domínio novo lá no
www.lacronico.wordpress.com
quem for, que vá curioso, porque é a alma de todo esse negócio chamado viver.
quarta-feira, 1 de junho de 2016
trans formações
1 opiniões
Escrito -
Tais G. Faraco
Já há um tempo parei
de escrever, os textos do blog, a coluna no jornal, as palavras que eu guardava
só para mim. Tentar voltar agora traz inegavelmente a sensação de um mundo que
se transformou, como o tempo numa redoma de vidro passando e passando, folhas
caindo e inverno chegando, e depois verão e sol e inverno tudo de novo.
Antes fosse apenas
climático. A transformação foi toda em um novo estado de ser, e em um novo
mundo exterior, com novas questões e complexidades. Muitas.
É como se não fosse
mais possível escrever como antes, e apesar de ser natural a muda de pele, é
algo que nos faz pensar. Se não escrevo mais como antes, se não posso escrever
como antes, o que consigo entender do meu momento atual, em relação ao passado?
Primeiro, o
vocabulário. O espaço acadêmico da faculdade, as aulas esperadas de teoria, o
contato com novos pensamentos e autores e as iluminações que vira e mexe
surgiam por conhecer a criação imagética de algumas obras fantásticas. As
provocações do conhecimento. Os constantes trabalhos obrigatórios que, antes de
merecerem as eternas reclamações, serviam para nos pôr em movimento. Os alunos
zanzando pelos corredores. E, no meu caso, o tempo livre dedicado a ler tudo o
que eu sempre quis conhecer. Vivência, novas palavras. O vocabulário estava em
seu florescimento. Experimentava um estilo aqui e outro ali, achava o ponto
alto conhecer Rimbaud, me preparava para Goethe e Tolstói, Dostoievsky e Herman
Hesse arrepiaram alguns pelos, aproveitava prateleiras da biblioteca da faculdade que, na
minha ignorância, parecia enorme. Hoje conheço maiores. Os dedos eram ágeis e às vezes se adiantavam
a mim. O impulso para escrever não precisava de um catalisador. Eu pensava
crônica, eu pensava poesia (ainda que o meu intenso autojulgamento e autocrítica
me deixassem incomodada por dar ao que eu escrevia tão sofisticada categoria).
Afinal, era o tipo de vida que eu estava levando.
Finda a faculdade,
começo a trabalhar, meu tempo é dividido em horário comercial, aprendo relações
humanas e frustrações, potências e barramento. O corpo sente, e muda. Não
consigo dividir meu tempo. Não leio mais. Meu contato com cinema, agora sem
alguém para me convidar a conhecer novos caminhos, resume-se ao caminho de
menos resistência. Fico ligada então a questões mais... comerciais. O
deslumbramento com aquelas produções outsiders sumiu, como também sumiram as
produções outsiders do meu convívio. Vez ou outra. Os novos pensamentos e
autores, as provocações do conhecimento, o estímulo, precisamente o estímulo,
ficaram adormecidos. Não há pessoas zanzando no meu convívio. Fico sentada em
uma sala solitária diante de um computador, prestando serviço para
publicitários ranzinzas e mal educados. Chego em casa com a têmpora latejando e
só penso em jantar. Não leio mais. Meu vocabulário se reduziu, foi enxugado,
sento para escrever e pareço mimetizar as páginas da internet que leio
diariamente. As frases se tornam curtas e para economizar tempo escolhe-se as
palavras mais fáceis, que vêm à primeira vista. Sinto-me como um redator
freelancer vendendo seus serviços por cinco reais um texto de oitocentas e
cinquenta palavras sobre nutrição. Toda uma forma de pensamento: por esse
preço, não vou quebrar a cabeça. Então você escolhe as palavras mais fáceis e a
construção mais lógica e tradicional de frase, de sentido. Nada muito profundo.
Afinal, o que vale é o preço, eu valho o preço, mesmo que por cinco reais. É
mesmo? De forma que, quando você lê e lê e lê e lê enquanto navega por ondas
cibernéticas, tudo parece igual. Torna-se seu vocabulário. Você pensa em tempo,
em divisão de horas, cabe aquele livro de Nietzsche agora? Torna-se seu jeito
de escrever. Porque tudo isso se torna, enfim, o tipo de vida que estou
levando.
Bom. As questões
complexas vão se interpelando. Então a culpa é do trabalho? Do dinheiro?
Estudante dependendo de dinheiro paterno é fácil mesmo. Sim, vozes. Há culpa e
não culpa. Afinal, falo de mim apenas. E de escolhas. Aquela coisa, dos 100
caminhos que podemos escolher. Muitos outros trilham rotas paralelas, outros
perpendiculares, outros são oblíquos ou estão à margem. O mundo começa a se
abrir, muitas vozes surgem, é tudo muito. Eu li hoje: num mundo globalizado,
somos cidadãos do mundo e, portanto, havendo outras oportunidades, temos todo o
direito de ir atrás delas.
À parte isso, pode
ser que eu tenha usado óculos escuros durante um tempo depois que saí da
faculdade. O ambiente lá pode ser uma bolha ou não, e os professores sempre se
referiam ao "mundo lá fora" como difícil, diferente. Mundo lá fora.
Que expressão engraçada.
Seja como for, um
estado de ser infeliz em determinado lugar no horário comercial também te
molda. A coisa mais legal do mundo é ver como existem pessoas com estados de
ser tão diferentes em situações iguais. Há aquelas que estão infelizes, mas são
ativos. Os que conseguem abstrair e construir seu mundo ideal nas horas vagas.
Os que se afogam na tristeza. Os que permanecem inertes. Os que nem pensam. Os
que pensam e continuam. Os que estão infelizes, mas não querem continuar. São
os caminhos, vê?
Segundo, a
superficialidade. Pode ser um ponto subjetivo, mas tem influência sobre mim. Em
algum ponto, vi que tudo ao redor era desprovido de profundidade e
consistência. Um mundo flutuava em noções, pensamentos, ações, comportamentos,
palavras, sentidos, que só batiam em uma casca. Todo o resto passava ignorado,
ou pior, dissimulado. Palavras viravam mercadoria. Orgânico, saudável,
equilíbrio. Os comportamentos passam só pela primeira leitura, a mais
instantânea, impulsiva, e assim se dão por satisfeitos. Há muitas discussões
que poderiam ter sido evitadas, ou levadas a outro nível. Há muito medo e gente
na defensiva. Ao mesmo tempo que há, curiosamente, um intenso trabalho de
divulgação pessoal. De aprimoramento da imagem. Será que passa por um aprimoramento
completo, mental, espiritual e físico? Ou é apenas um retoque de imagem como um
programa de edição? Para se ajustar a valores de mercado.
Ao mesmo tempo,
agora você é cidadão do mundo, da cidade, do seu bairro, da comunidade da sua
casa. Multicultural. Se o que eu enxergo ao meu redor é uma casca superficial,
também pode ser que enxergo o reflexo de mim mesma. Será? Às vezes compreender
passa pelos incômodos. Então é isso, estou também vivendo na superficialidade?
Que terrível.
Mas deve ser isso
mesmo: de um ponto ao outro, eu ainda
não me encontrei. Da experimentação ao completo abandono, que trajetória mais
irregular para o que eu pretendia! Não, não, devo passar agora para o passo
adiante (ou um passo atrás), que se situa precisamente onde deveria ser o meio
desses dois estados - a vivência, a experiência e o presente. Se todo início é
o início e o final é o abandono, então devo estar no meio. Conhecendo os dois
opostos, posso decidir onde me encontro. Pois a minha verdade não está sendo
esta - apressada, apática e desconectada do conhecimento.
Movimento!
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
parabéns
0opiniões
Escrito -
Tais G. Faraco
vamos comemorar o marcador de visitas ter chegado ao número 9000!
obrigada minha gente
o que isso significa? absolutamente nada...
obrigada minha gente
o que isso significa? absolutamente nada...
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
a grande questão/o início de um outro blog
0opiniões
Escrito -
Tais G. Faraco
Estive pensando: como se luta contra a banalidade?
A quietude é um estado de espírito, uma vivência internalizada das sensações. Falar exige por demais energia e pensamento lógico, aliás, mais do que esses dois fatores. Falar assume uma ação intrincada e complexa, mesmo que seja a coisa mais frívola a ser dita, 'como o tempo está frio'; existe a sua posição como comunicador e aquele com quem você se comunica, se comunicamos, é preciso que nos façamos compreensíveis. Não existe motivos para invertemos a sequência lógica da frase do tempo estar frio por qualquer outra sequência que fosse, a princípio, arbitrária ou anarquista. A outra pessoa não entenderia, ou até poderia fingir entender, mas em algum momento rompeu-se o fio da comunicação e mesmo que tenha sido uma frase muito banal para ser dita, foi uma perda desnecessária de energia e motivação vazia, nula. A troco de nada. Afora isso, quando falamos, externalizamos em palavras o que estamos pensando, e o pensamento em sua maioria das vezes tem uma formação nebulosa. Quando ele existe internalizado, suas conexões são feitas rapidamente, mesmo que de maneira um tanto indefinida. Ainda no caso frívolo, por exemplo, podemos pensar de modo subjetivo sobre o porquê estar frio. É capaz de os pensamentos vagarem de um extremo a outro. Se formos verbalizar, no entanto, pegamos apenas uma fração disso para ser organizada em uma sentença lógica. Então buscamos palavras e as entonações adequadas para aquilo que se quer dizer, porque não basta apenas as palavras em si, pois a ela junta-se todo o gestual e a melodia da fala. Ao falarmos do tempo frio, podemos dizer de várias maneiras. E não pensamos na frase pronta de antemão, mas de alguma maneira ela vai se formando à medida que tentamos clarear a fração do pensamento para aquela pessoa que está nos ouvindo.
Falar é complicado. Ao menos para mim, de alguma maneira que não entendo, tem sido complicado. São muitas coisas a serem levadas em conta: a escolha das palavras, a maneira com que você se comunica, a coerência com aquilo que lhe é interno e está sendo externalizado, é isso, sobretudo a coerência!, e ao final das contas, a rejeição da banalidade. Ao menos esse último é motivo pessoal meu.
E por que tudo isso?, você poderia se perguntar. Talvez exatamente porque se não estamos sendo coerentes, então estamos falhando em nossas relações humanas. E encontrar a coerência entre aquilo que está no seu pensamento e a forma com que você expressa verbalmente seu pensamento não é pouca coisa, pelo contrário, é algo de importante! Não deve ser visto com leviandade! É a expressão humana.
Claro que acabo falando aqui de uma coerência relacionada apenas à expressão, mas isso acaba se refletindo em um todo. Você não saber falar de maneira clara e precisa aquilo que você quer falar é um problema (essa é uma frase que poderia ter saído de um livro tolo de autoajuda, perdoem-me), porque você não estará se expressando por inteiro. Como consequência, sua relação com aquele que o ouve também não é completa, pois você não se fez entender por completo.
A isso somam-se também as diversas sutilezas perceptíveis. A cada segundo que você faz uma pausa para se lembrar de alguma palavra, sua credibilidade perante os outros cai.Imperceptível, dá para perceber pelo desvio de olhar que o outro faz nessa hora, como se te achasse um indivíduo muito flutuante sem clara certeza de suas palavras. Como uma dúvida.
A comunicação humana, no entanto, é repleta de remendos e tropeços e imperfeições. Sim, de fato. Está sujeita à maleabilidade. Mas não será talvez isso a causa de tanta incompreensão no mundo?
Não falo de boa oratória, mas talvez de articulação. Ter a capacidade de articular seus pensamentos de forma coerente, tanto com o que se quer falar quanto na forma com que se pretende falar. Se ao ser humano fosse dado apenas o direito de viver isolado, jamais - pense, jamais! - necessitaríamos disso. Não seria preciso falar! Por que falaríamos? Com quem? Poderíamos, é claro, conversar sozinhos com as estrelas, mas a comunicação seria outra, talvez. Mais louca, mais livre. Talvez emitiríamos sons, como os animais, embora o som também possa fazer parte de uma estrutura lógica.
Mas enfim. Ao final das contas, como já disse Tarkovski, a experiência do autoconhecimento é o único objetivo da humanidade; o homem "está eternamente estabelecendo uma correlação entre si mesmo e o mundo". E essencialmente é isso. Estamos o tempo inteiro nos relacionando de uma forma ou de outra, com outros e com nós mesmos. Mediando esta relação estão diversas formas de expressão, entre elas a fala. E podemos ser incompreendidos em muitos níveis. Talvez resta a cada um se perguntar em até qual medida se quer ser compreendido.
A minha, na mais completa e profunda possível. A banalidade é apenas a superfície de um oceano...
e ao se buscar essa comunicação mais completa e profunda é que se conhecem os e seus limites. (Acho que aí reside a minha atual luta interna)...
em tempo: Tarkovski fala por mim! Ainda que fale sobre cinema, veja o que ele diz sobre as palavras:
"O roteirista pode (...) escrever, simplesmente: 'Os personagens param junto à parede', e prosseguir, acrescentando o diálogo. No entanto, o que há de especial nas palavras que estão sendo ditas, e o que elas têm a ver com o fato de se estar de pé ao lado da parede? O sentido da cena não pode estar concentrado no texto dos personagens. 'Palavras, palavras, palavras' — na vida real, estas têm pouco significado, e só raramente, e por muito pouco tempo, pode-se testemunhar uma perfeita harmonia entre palavra e gesto, palavra e ato, palavra e sentido. Pois, em geral, as palavras de uma pessoa, seu estado interior e suas ações físicas desenvolvem-se em planos diversos. Eles podem se complementar ou, às vezes, até certo ponto, estar em concordância mútua; no mais das vezes, porém, elas se contradizem, e em alguns momentos de extremo conflito, desmascaram-se mutuamente."
em tempo: Tarkovski fala por mim! Ainda que fale sobre cinema, veja o que ele diz sobre as palavras:
"O roteirista pode (...) escrever, simplesmente: 'Os personagens param junto à parede', e prosseguir, acrescentando o diálogo. No entanto, o que há de especial nas palavras que estão sendo ditas, e o que elas têm a ver com o fato de se estar de pé ao lado da parede? O sentido da cena não pode estar concentrado no texto dos personagens. 'Palavras, palavras, palavras' — na vida real, estas têm pouco significado, e só raramente, e por muito pouco tempo, pode-se testemunhar uma perfeita harmonia entre palavra e gesto, palavra e ato, palavra e sentido. Pois, em geral, as palavras de uma pessoa, seu estado interior e suas ações físicas desenvolvem-se em planos diversos. Eles podem se complementar ou, às vezes, até certo ponto, estar em concordância mútua; no mais das vezes, porém, elas se contradizem, e em alguns momentos de extremo conflito, desmascaram-se mutuamente."
terça-feira, 24 de novembro de 2015
um quadro para Raskólnikov
1 opiniões
Escrito -
Tais G. Faraco
Que sensação a de se encontrar com uma figura que julgava
ter criado apenas na imaginação! Quando havia lido Crime e Castigo imaginava
Raskólnikov em um quarto de teto afunilado, paredes marrons, ambientação um
pouco escura, não sei se havia pensado em alguma janela, mas certamente a cama
ficava encostada à parede. O chão poderia ser de assoalho, aquela madeira
antiga que levanta muito pó. Mas imaginava sobretudo o teto. Não sei dizer exatamente se o que eu imaginava derivava da descrição do livro ou era a minha mente correndo solta - afinal, faz anos que li, mas o barato da leitura é justamente esse. Tampouco consigo explicar como é que a memória guarda essas ambientações imaginárias que fazemos com cada livro que lemos!
Mas eis que encontro sem querer essa imagem em algum canto da internet:
Der arme Poet (O poeta pobre) é um quadro do séc. XIX do pintor alemão Carl Spitzweg - e parece que um quadro bastante popular e adorado entre os alemães. Não conhecia a imagem e o que me chamou a atenção de imediato foi ter notado uma semelhança assustadora com a ideia que eu havia construído na imaginação do quarto de Raskólnikov, exceto talvez pelo tamanho do aposento, que no quadro está pequeno e apertado demais, em relação a um quarto mais espaçoso, porém vazio, que eu havia dado ao personagem. Para ficar ainda mais parecido com o que eu figurei, sabe-se lá de onde, eu teria que inverter a imagem:
E assim a minha imaginação sente-se quase invadida em
segredo! Que sensação diferente...
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
não é bem isso que eu queria dizer
1 opiniões
Escrito -
Tais G. Faraco
não sei bem pra quem estou escrevendo no momento,
mas queria dizer que há projeto novo saindo do forno com esse mesmo título
ele resume bem o que anda acontecendo e a falta de textos no momento:
uma noia na escolha das palavras.
nenhuma palavra que escolho e nem a construção das frases estão exprimindo aquilo que eu quero dizer.
não é desesperador?
as palavras entopem no bueiro e escapam só as mais fáceis, lisinhas, redondinhas, sempre escritas, sempre ditas. Que ódio.
perceber clichês na própria ordem das palavras, e depois nas palavras em si, é ofender o português.
e eu adoro o português!
mas queria dizer que há projeto novo saindo do forno com esse mesmo título
ele resume bem o que anda acontecendo e a falta de textos no momento:
uma noia na escolha das palavras.
nenhuma palavra que escolho e nem a construção das frases estão exprimindo aquilo que eu quero dizer.
não é desesperador?
as palavras entopem no bueiro e escapam só as mais fáceis, lisinhas, redondinhas, sempre escritas, sempre ditas. Que ódio.
perceber clichês na própria ordem das palavras, e depois nas palavras em si, é ofender o português.
e eu adoro o português!
terça-feira, 28 de julho de 2015
o mundo do conceito
0opiniões
Escrito -
Tais G. Faraco
Vamos começar essa história falando de um jeito claro: João,
nosso personagem, mora em um lugar medíocre, não importa se esse lugar é macro
ou micro, é bairro cidade ou país. O julgamento de ser medíocre, porque afinal
é um julgamento, não é subjetivo. Está evidente que João tem, para um jovem de sua
idade, uma cabeça desordenada de informações circulantes e pipocantes de tudo o
que forma as regras invisíveis do lugar onde mora, porque ele não é capaz de
tomar uma decisão sozinho ou uma decisão que julga tomar sozinho. Vamos ver
porquê.
Depois de uma jornada exaustiva de trabalho, João recebe seu
salário, mas no dia seguinte acorda se perguntando se é aquilo mesmo que ele
quer, trabalhar-dinheiro-trabalhar, porque ele observa os outros à sua volta e
todos parecem estar ganhando dinheiro de um jeito bem legal. João assiste
televisão e lê revistas e descobre que esses outros são chamados de
“empreendedores” e são a nova onda do século. Os empreendedores aparecem bem
nas fotos, alinhados e sorridentes, discorrendo sobre o novo aplicativo
revolucionário (aspas aqui) que inventaram para os novos celulares quase
robóticos e que, santa mãe, rendeu um milhão no primeiro ano. A TV e a revista
exaltam. Quando João passeia pela internet no meio do seu trabalho durante o
dia, todos os seus jovens amigos querem fazer o mesmo. Estão todos comentando
as infelicidades de suas miseráveis vidas, e como poderiam todos estar fazendo
outra coisa. Sempre qualquer coisa que não o que fazem agora. O futuro, para
eles, é algo que se alcança somente se a felicidade e o prazer baterem à porta.
Eles pensam que poderiam viajar pelo mundo inteiro, carregando apenas um
celular e um computador com internet, e assim tudo pode acontecer. João não
sabe o que sente. Afinal, se basta apenas um celular e um computador, por que
ele e todos ainda não mudaram radicalmente suas vidas?
Sem saber o que sentir, João sai no seu horário de almoço
procurando um lugar para comer. Está andando entre vários restaurantes, com uma
fome desgraçada, e são todos muito agradáveis. João queria uma comida, mas se
deteve em frente a um balcão que oferecia algo apetitoso: uma vida saudável. O
balcão parecia oferecer diversas
opções de refeição, mas João entendeu outra coisa. Entendeu que ali poderia
comer sem culpa, tudo era livre de gorduras e calorias; poderia comer alimentos
verdadeiramente orgânicos, escolhidos com cuidado por trabalhadores de uma
cooperativa do interior do Estado, que trabalham seis horas por dia, com
direitos de trabalhador, representatividade de sindicato e trator próprio.
Almoçando ali, João comia também a bela arte do design de letras finas e cores
divertidas dos títulos, o tratamento de imagem em cima dos milhos reluzentes e as
sucintas frases motivadoras escritas na parede: “comer bem faz bem”, “aqui você
pode comer sem culpa” e a clássica “sorria, você está levando uma vida saudável”.
João não entendeu quem levou o julgamento de bom ou ruim também para o almoço.
Mais do que não saber o que comer, João não sabia mais o que deveria comer.
Sem saber o que comer, decide voltar para casa. Tem um
encontro com uma velha amiga. Sua amiga circulava por muitos grupos sociais e grupos
de estudantes da sua faculdade. Ela chega à sua casa vestindo roupas de
academia e uma camiseta com os dizeres “eu sou fitness” em letras verde limão.
E já chega dizendo que ele está fora de forma, e que ela estava exatamente como
ele, mas começou um ótimo treinamento, que aliás deve continuar para completar
sua meta programada para o dia, portanto deveriam ir para o parque conversar. A
sua meta só termina com o levantamento de vinte quilos em cada perna na
academia ao lado de sua casa. E, é claro, tudo acompanhado de uma rígida dieta
de calorias, jantares de caldo verde, sucos “detox” e sol de manhã, pois essa é
a receita para ser feliz, conforme diz o casal de atores abraçados e alegres no
painel com a marca da academia.
Os dois caminham pelo parque e um casal de meninas passa ao
lado deles, de mãos dadas. João continua andando naturalmente, mas sua amiga
sorri para o casal e faz um gesto de “paz e amor”. Depois comenta para o João:
temos que respeitá-las, elas são minoria. João não entende o comportamento da
amiga, pois João não viu um casal de minoria, viu apenas duas meninas juntas e
isso não lhe trouxe nenhuma reação adversa. Sua amiga se enfurece e diz que por
pensamentos machistas como esse é que o país não anda para frente. Sai bufando
e começa a correr pelo parque, deixando João para trás, que está ainda sem
entender por que foi tachado de um nome que sequer se aplica ao que ele é.
Sem ter mais com quem conversar, ele se senta em um banco do
parque, desolado, aproveitando os últimos minutos do seu horário de almoço. Em
resumo, não sabe o que deve fazer com a sua vida, o que deve comer, como deve
cuidar do corpo e como deve se comportar socialmente perante todos os grupos.
Está sentado olhando para o parque. Nesse momento, uma jovem garota senta-se em
um banco em frente a João, procurando algo em sua bolsa. O cachorro que a
acompanha na coleira também se senta, esperando a dona, e olha fixamente para
João. João o observa, o pequeno cachorro da menina está vestindo uma saia rosa
com um colete amarelo, na cabeça tem diversos penduricalhos presos ao pelo,
inclusive uma estrelinha de bom cão colada na testa. Veste sapatinhos que parecem
apertados. O cachorro olha para João com olhar de desespero, como se pedisse
para tirá-lo dali de um mundo que criou um conceito para vestir o cachorro como
gente. João olha para o cão com o mesmo olhar de desespero de quem está com a
cabeça cheia de minhocas.
Assinar:
Postagens (Atom)