Já há um tempo parei
de escrever, os textos do blog, a coluna no jornal, as palavras que eu guardava
só para mim. Tentar voltar agora traz inegavelmente a sensação de um mundo que
se transformou, como o tempo numa redoma de vidro passando e passando, folhas
caindo e inverno chegando, e depois verão e sol e inverno tudo de novo.
Antes fosse apenas
climático. A transformação foi toda em um novo estado de ser, e em um novo
mundo exterior, com novas questões e complexidades. Muitas.
É como se não fosse
mais possível escrever como antes, e apesar de ser natural a muda de pele, é
algo que nos faz pensar. Se não escrevo mais como antes, se não posso escrever
como antes, o que consigo entender do meu momento atual, em relação ao passado?
Primeiro, o
vocabulário. O espaço acadêmico da faculdade, as aulas esperadas de teoria, o
contato com novos pensamentos e autores e as iluminações que vira e mexe
surgiam por conhecer a criação imagética de algumas obras fantásticas. As
provocações do conhecimento. Os constantes trabalhos obrigatórios que, antes de
merecerem as eternas reclamações, serviam para nos pôr em movimento. Os alunos
zanzando pelos corredores. E, no meu caso, o tempo livre dedicado a ler tudo o
que eu sempre quis conhecer. Vivência, novas palavras. O vocabulário estava em
seu florescimento. Experimentava um estilo aqui e outro ali, achava o ponto
alto conhecer Rimbaud, me preparava para Goethe e Tolstói, Dostoievsky e Herman
Hesse arrepiaram alguns pelos, aproveitava prateleiras da biblioteca da faculdade que, na
minha ignorância, parecia enorme. Hoje conheço maiores. Os dedos eram ágeis e às vezes se adiantavam
a mim. O impulso para escrever não precisava de um catalisador. Eu pensava
crônica, eu pensava poesia (ainda que o meu intenso autojulgamento e autocrítica
me deixassem incomodada por dar ao que eu escrevia tão sofisticada categoria).
Afinal, era o tipo de vida que eu estava levando.
Finda a faculdade,
começo a trabalhar, meu tempo é dividido em horário comercial, aprendo relações
humanas e frustrações, potências e barramento. O corpo sente, e muda. Não
consigo dividir meu tempo. Não leio mais. Meu contato com cinema, agora sem
alguém para me convidar a conhecer novos caminhos, resume-se ao caminho de
menos resistência. Fico ligada então a questões mais... comerciais. O
deslumbramento com aquelas produções outsiders sumiu, como também sumiram as
produções outsiders do meu convívio. Vez ou outra. Os novos pensamentos e
autores, as provocações do conhecimento, o estímulo, precisamente o estímulo,
ficaram adormecidos. Não há pessoas zanzando no meu convívio. Fico sentada em
uma sala solitária diante de um computador, prestando serviço para
publicitários ranzinzas e mal educados. Chego em casa com a têmpora latejando e
só penso em jantar. Não leio mais. Meu vocabulário se reduziu, foi enxugado,
sento para escrever e pareço mimetizar as páginas da internet que leio
diariamente. As frases se tornam curtas e para economizar tempo escolhe-se as
palavras mais fáceis, que vêm à primeira vista. Sinto-me como um redator
freelancer vendendo seus serviços por cinco reais um texto de oitocentas e
cinquenta palavras sobre nutrição. Toda uma forma de pensamento: por esse
preço, não vou quebrar a cabeça. Então você escolhe as palavras mais fáceis e a
construção mais lógica e tradicional de frase, de sentido. Nada muito profundo.
Afinal, o que vale é o preço, eu valho o preço, mesmo que por cinco reais. É
mesmo? De forma que, quando você lê e lê e lê e lê enquanto navega por ondas
cibernéticas, tudo parece igual. Torna-se seu vocabulário. Você pensa em tempo,
em divisão de horas, cabe aquele livro de Nietzsche agora? Torna-se seu jeito
de escrever. Porque tudo isso se torna, enfim, o tipo de vida que estou
levando.
Bom. As questões
complexas vão se interpelando. Então a culpa é do trabalho? Do dinheiro?
Estudante dependendo de dinheiro paterno é fácil mesmo. Sim, vozes. Há culpa e
não culpa. Afinal, falo de mim apenas. E de escolhas. Aquela coisa, dos 100
caminhos que podemos escolher. Muitos outros trilham rotas paralelas, outros
perpendiculares, outros são oblíquos ou estão à margem. O mundo começa a se
abrir, muitas vozes surgem, é tudo muito. Eu li hoje: num mundo globalizado,
somos cidadãos do mundo e, portanto, havendo outras oportunidades, temos todo o
direito de ir atrás delas.
À parte isso, pode
ser que eu tenha usado óculos escuros durante um tempo depois que saí da
faculdade. O ambiente lá pode ser uma bolha ou não, e os professores sempre se
referiam ao "mundo lá fora" como difícil, diferente. Mundo lá fora.
Que expressão engraçada.
Seja como for, um
estado de ser infeliz em determinado lugar no horário comercial também te
molda. A coisa mais legal do mundo é ver como existem pessoas com estados de
ser tão diferentes em situações iguais. Há aquelas que estão infelizes, mas são
ativos. Os que conseguem abstrair e construir seu mundo ideal nas horas vagas.
Os que se afogam na tristeza. Os que permanecem inertes. Os que nem pensam. Os
que pensam e continuam. Os que estão infelizes, mas não querem continuar. São
os caminhos, vê?
Segundo, a
superficialidade. Pode ser um ponto subjetivo, mas tem influência sobre mim. Em
algum ponto, vi que tudo ao redor era desprovido de profundidade e
consistência. Um mundo flutuava em noções, pensamentos, ações, comportamentos,
palavras, sentidos, que só batiam em uma casca. Todo o resto passava ignorado,
ou pior, dissimulado. Palavras viravam mercadoria. Orgânico, saudável,
equilíbrio. Os comportamentos passam só pela primeira leitura, a mais
instantânea, impulsiva, e assim se dão por satisfeitos. Há muitas discussões
que poderiam ter sido evitadas, ou levadas a outro nível. Há muito medo e gente
na defensiva. Ao mesmo tempo que há, curiosamente, um intenso trabalho de
divulgação pessoal. De aprimoramento da imagem. Será que passa por um aprimoramento
completo, mental, espiritual e físico? Ou é apenas um retoque de imagem como um
programa de edição? Para se ajustar a valores de mercado.
Ao mesmo tempo,
agora você é cidadão do mundo, da cidade, do seu bairro, da comunidade da sua
casa. Multicultural. Se o que eu enxergo ao meu redor é uma casca superficial,
também pode ser que enxergo o reflexo de mim mesma. Será? Às vezes compreender
passa pelos incômodos. Então é isso, estou também vivendo na superficialidade?
Que terrível.
Mas deve ser isso
mesmo: de um ponto ao outro, eu ainda
não me encontrei. Da experimentação ao completo abandono, que trajetória mais
irregular para o que eu pretendia! Não, não, devo passar agora para o passo
adiante (ou um passo atrás), que se situa precisamente onde deveria ser o meio
desses dois estados - a vivência, a experiência e o presente. Se todo início é
o início e o final é o abandono, então devo estar no meio. Conhecendo os dois
opostos, posso decidir onde me encontro. Pois a minha verdade não está sendo
esta - apressada, apática e desconectada do conhecimento.
Movimento!